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Resenha. O garimpeiro da memória: Aluizio Palmar e a sombra da ditadura. Jacob Blanc RJ, Garamond, 2025.

Resenha de: BLANC, Jacob. O garimpeiro da memória: Aluizio Palmar e a sombra da ditadura. RJ, Garamond, 2025.

A biografia traz apenas memória ou também ajuda a entender a história?

Carla Luciana Silva

Historiadora. Professora da UNIOESTE

 

Conheci pessoalmente Aluízio Palmar no ano de 2012. Já tinha lido sobre ele, ele já havia visitado minha universidade divulgando seu livro, mas não tínhamos tido contato direto. Quando decidi me dedicar a tratar o tema da ditadura no oeste do Paraná a partir da perspectiva do terrorismo de estado, contatamos Aluizio, convidei Enrique Padrós e, organizamos a equipe e fomos a Foz do Iguaçu. Realizamos uma  série de entrevistas que foram parcialmente publicadas na revista Espaço Plural. Depois disso, contribuímos com projetos para o Centro dos Direitos Humanas de Foz, realizamos uma audiência da comissão Estadual da Verdade em Cascavel, entre inúmeras outras atividades que seguem até hoje. Inclusive, uma das mais ricas foi a viagem a Aristóbulo del Vale, na “base da VPR” na Argentina, onde a organização havia se mantido clandestina no início dos 1970. Foi um encontro com vários militantes do passado, em homenagem às suas histórias.

A partir disso me coloco a fazer alguns comentários ao livro de Jacob Blanc, a quem também tive o prazer de conhecer pessoalmente. Em plena pandemia ele andava Brasil afora colhendo material para seu livro sobre a Coluna Prestes. Depois, seu livro sobre Itaipu seria também uma referência importante de meus novos rumos de pesquisa. A partir de conhecer o biografado e a obra do biógrafo, coloco algumas questões.

Em quais medidas a biografia dá direito ao biógrafo adentrar na vida do sujeito biografado?Porque elementos psicológicos privados podem ou devem aparecer na biografia? Quais os limites a saber do nosso sujeito histórico?

Na legislação brasileira, uma biografia pode ser realizada por qualquer escritor, respeitando-se a liberdade de expressão. Porém, há limites que precisam ser respeitados no âmbito da privacidade e intimidade.

No caso de indivíduos que se tornam sujeitos históricos, quais os limites no processo de escrita precisam ser respeitados e quais são realmente de domínio “público”, de interesse amplo e irrestrito?

O biografado deve necessariamente contar todos os fatos? Ou mais que isso, os sentimentos e limitações que o sujeito se impõe e aos quais está historicamente condicionado, são passíveis de discussão de um biógrafo?

O livro de Jacob Blanc propõe ser uma “biografia colaborativa”. Ele indica que propôs ao biografado que o mesmo fosse co-autor, ao que houve recusa por parte do biografado. Assim, a opção foi Blanc assumir a autoria mas repassar todo o texto previamente para leitura e sugestões do biografado. As opções finais, entretanto, foram do biógrafo. Ao longo do livro, indica quando houve pedidos especiais com relação a determinados temas, ou correções importantes. Assim, há um diálogo entre eles, que o autor busca repassar para seu leitor. Mas isso traz algumas situações incômodas na leitura.

Ao longo dos últimos anos, uma expressiva quantidade de biografias foi produzida por pessoas que viveram a ditadura e foram vítimas de processos traumáticos. Uns mais bem escritos que outros, todos usam a escrita para rememorar e para reafirmar a necessidade do não esquecimento. Digo isso para balizar a minha leitura, de alguém que já leu muitas biografias de pessoas que foram atingidas pela Ditadura: vítimas, resistentes, familiares, e até mesmo algozes.

Alguns escrevem para nunca mais ter que falar sobre o tema. Há os casos também daqueles que são biografados por outros, após sua morte ou mesmo em vida, caso como o do livro de Jacob Blanc. Ele indica que produziu o livro para contribuir com a luta de Palmar contra o seu algoz que 50 anos depois teve a audácia de processá-lo. Acreditava que um estadunidense escrevendo uma biografia, que seria publicada em dois idiomas, seria uma importante contribuição para mostrar a importância histórica do sujeito Aluízio, processado pelo seu torturador. Uma situação não apenas inusitada como absurda. Nesse sentido, o livro sem dúvida é uma enorme contribuição de Blanc.Escrito sob a pandemia, muitos dos dados coletados o foram remotamente, sendo usado o recurso de conversas gravadas e também via whatsapp.

Mas não por isso deixa de ser comprometido metodologicamente com a escrita histórica. Blanc já escrevera outros livros importantes no Brasil, e conhece bastante bem a historiografia brasileira, seu livro e sua escrita dialogam e contribuem com o debate. Há momentos, entretanto que suas análises são claramente de um estrangeiro, que não viveu os momentos, e as pressões históricas, e isso não é demérito, mas poderia ser mais explicitado.

É muito comum que a lembrança expressa nas memórias seja repetitiva, e mesmo que insista em imprecisões que muitas vezes são proteções individuais ao trauma e à violência. A questão é, cabe ao biógrafo insistir nessas incoerências? Ressaltá-las e fazer o biografado produzir uma versão na qual não se reconheça?Ou remeter a um ideal de pessoa, tornar-se, a posteriori um bom pai, um bom marido? Ou o pior, um “mau pai” e um “mau marido”? Por que nos caberia julgar isso?

Qual o limite que temos de interpretar a memória de outrem? Não seria a história um mecanismo que nos obrigue a separar a memória, o vivido, a lembrança do que “realmente aconteceu”? Às vezes a biografia de Blanc circula em torno de situações do biografado, fazendo com que ele se posicione e “reveja” seus “erros”, de maneira um tanto desconcertante.

O sujeito histórico tem o dever de expor suas feridas individuais? Quais as medidas para essa posição? Para que expor a dor e o trauma dos filhos, ou especular sobre que sentiu a esposa se o biografado era outra pessoa e a esposa não quis lhe conceder sua versão? É uma biografia familiar? Trazer ao leitor a angústia que viveu o biografado quando sua filha reagiu mal às perguntas feitas pelo biógrafo é um ponto crítico do livro. Questionar a reação do biografado que tenta saber o que fora perguntado é uma situação incômoda na leitura. Para que? Qual a função disso? Não seria mais útil cruzar as experiências de familiares com as de outros familiares de modo a problematizar essa questão?

Parece que o ethos da vida dos revolucionários / militantes escapa ao autor. Algumas cobranças, muitas delas no nível de estabelecer dúvidas, se tornam estranhas, como se cobrasse um comportamento do biografado, e isso sobretudo no que diz respeito aos seus sentimentos.

Um desses elementos é a incompreensão com relação às opções que foram tomadas no exílio e a forma posterior de reelaborá-las. Como pesquisadora da temática já ouvi algumas vezes pessoas agradecerem a Aluízio Palmar por ter “salvo sua vida”. Num contexto de Terrorismo de Estado em que militantes brasileiros e latino-americanos se reuniam no Chile para reorganizar suas lutas, Aluízio optou por manter-se às margens. Não buscou asilo, não buscou estudar ou encontrar empregos oficiais. A obra de Jacob recupera o fato de que Palmar e sua esposa foram recebidos e acolhidos nos aparelhos da VPR em Santiago. Embora reproduza a versão oficial de que era um ambiente seguro e protegido, sabemos que aqueles locais eram vigiados detalhadamente pelos serviços internacionais de informação (SILVA, 2021). Por ali passou um esquema de colaboração que reproduzia um modus operandi que levou a prisões e assassinatos no Brasil, como o próprio caso da chacina do Parque Nacional, em 1974. Este foi apenas um caso entre outros.

A documentação no MRE/Chile ou do CIEX brasileiro mostra que aquele ambiente não era seguro. A figura de Onofre Pinto, tão importante para a VPR, não estava segura no Chile, a tal ponto de recair em situações constrangedoras como a confiança dada ao Cabo Anselmo, que desencadearia a chacina da Chácara de São Bento. Mas mais que isso, a rearticulação das formas do MNR, com Joaquim Cerveira, sobre a qual há muito registros na documentação repressiva internacional mostra a insegurança daquele momento. Esse caso levaria a aperfeiçoar a ação repressiva de “capturar” pacificamente militantes para que voltassem ao Brasil. O uso inclusive de infiltrados e o forjamento de textos revolucionários com o de Abrahan Guillén (SILVA, 2021b) fez parte dessa tática.

Se o clima em Santiago era de euforia, de reencontro de lutadores brasileiros, era também de apreensão e insegurança. E exatamente como Palmar leu a situação, não sabemos. O fato é que ele decidiu por seguir adiante, não se fixar no Chile e isso salvou-lhe a vida quando o Golpe de Pinochet chegou. Muitos relatos nos mostram o desespero daqueles que foram presos no estádio nacional ou que buscavam desesperadamente um lugar nas embaixadas que acolheram os brasileiros que passavam a ser novamente refugiados.

Tudo isso gera uma insistência de Blanc que parece não captar essa peculiaridade: tudo indica que a saída do Chile foi uma opção de segurança; e mais importante, o compromisso com a volta ao Brasil por absurdo que possa parecer fazia parte do pacto de muitos daqueles que foram libertados em sequestros de diplomatas (SILVA, 2020). Era um compromisso revolucionário. Em diversos pontos de sua obra Blanc insiste na versão de que Aluízio teria se tornado uma pessoa amargurada ao se defrontar com sua opção, dando a entender que o mesmo invejava as pessoas que foram para exílios europeus. É uma especulação fundada na repetição da demarcação de uma diferença no modo doexílio de Palmar: clandestino, isolado, escondido. Porém, os seus primeiros anos na Argentina foram de militância, como o próprio Blanc mostra, elucidando o apoio dado ao ERP por Palmar.

Há uma referência à presença da VPR, mais propriamente próxima a Posadas. Mas aqui há uma ausência de um aspecto muito relevante das histórias anteriormente contadas por Palmar: a figura emblemática de Roberto De Fortini e o papel que desempenhavam com relação à própria VPR.

 

Um ponto forte na biografia é a militância de Palmar no MR8. Pontos obscuros apareceram, e mostram desde ali não apenas a coragem daqueles jovens militantes que adentraram o Parque Nacional do Iguaçu, como a forma pouco eficaz das escolhas da luta. Caberia referir que em período muito próximo àquele havia militantes da VAR-Palmares buscando organizar a luta em Nova Aurora, justamente o local da pista falsa que viria posteriormente sobre o paradeiro dos desaparecidos de 1974.

Há um detalhe que aparece bastante nesse aspecto que é a rebeldia de Palmar. Fazendo luta armada, treinamento de guerrilha, não apenas apaixonou-se como se casou com uma jovem em Foz do Iguaçu. Essa atitude vai contra todas as regras de segurança conhecidas dos grupos clandestinos. Sequer o namoro era permitido. Blanc mostra o “mea culpa” de Palmar, mas é preciso que se diga, isso não interferiu na queda do grupo. E depois, mesmo preso e torturado, não foi abandonado pela sua família. Ou seja, mesmo que pareça que estamos tratando de um sujeito que parece bruto, seus laços familiares aparecem de forma doce e permanente ao longo da obra.

Outro destaque da obra é a recuperação das informações sobre as prisões. É muito interessante perceber como agia a repressão: uma pessoa ser processada em dois estados, e ser levada de um lugar para outro na medida das injunções do Exército ou da Marinha é algo que fica bem apresentado na obra, que merece a leitura e contribui com o “garimpo da memória”.

 

BIBLIOGRAFIA:

BLANC, Jacob. Depois do dilúvio. RJ, Garamond, 2021.

SILVA, Carla, PADRÓS, Enrique, CALIL, Gilberto et al. Entrevista com Aluizio Ferreira Palmar. Espaço Plural. Ano XIII, n.27. 2012.

SILVA, Carla Luciana. Sequestros e terrorismo de Estado no Brasil: casos de resistência revolucionária. Izquierdas, 49, octubre 2020:1646-1669.https://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-50492020000100284

SILVA, Carla Luciana. A revolução da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária. Uberlândia, Navegando, 2021a.https://www.editoranavegando.com/livro-a-revolucao-vpr

SILVA, C. L. (2021b). A influência teórica do militante espanhol Abraham Guillén em grupos de luta armada na América Latina. Revista Eletrônica da ANPHLAC, 21(30), 104–128.https://revista.anphlac.org.br/anphlac/article/view/3976

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