AVÁ-GUARANI: A CONSTRUÇÃO DE ITAIPU E OS DIREITOS TERRITORIAIS
Organizadores
Gustavo Kenner Alcântara
João Akira Omoto
Julio José Araujo Junior
Luciana Maria de Moura Ramos
A história do povo Guarani desafia a ideia de que houve, em algum
momento, um vazio demográfico na região situada entre o Brasil e o Paraguai.
A territorialidade Guarani, que transcende as fronteiras artificiais estabelecidas
para os dois países, possui singularidades que merecem ser devidamente estudadas, de forma a desnudar o suposto caráter neutro das ações estatais que
atingiram profundamente os seus modos de vida ao longo da história.
No oeste do Paraná, desde o período colonial, a desconsideração da presença indígena e a invisibilização do povo Avá-Guarani serviram à ocupação
de seus territórios por particulares e projetos governamentais. A intervenção
colonialista manteve-se após a independência: no século XIX, a concessão das
terras que os indígenas ocupavam à empresa Matte Larangeira submeteu-os
ao desapossamento e à servidão; no século XX, projetos governamentais de
colonização e a criação do Parque Nacional do Iguaçu implicaram usurpação
de territórios e confinamentos dos Avá-Guarani.
A construção de Itaipu (1975-1982), realizada durante as ditaduras brasileira e paraguaia, é mais um capítulo na história de violências contra o povo
Avá-Guarani. Mas não é um episódio qualquer. A usina hidrelétrica causou uma
transformação definitiva na paisagem, nos espaços e nos recursos da região,
afetando a sua sobrevivência física e cultural.
O alagamento das áreas e a certificação pelo Estado da inexistência de
presença indígena na área – com a chancela da Funai, por meio de diagnósticos
precários – causaram danos que são sentidos até hoje por esse povo. Aldeias
inteiras foram alagadas, moradias foram destruídas e redes de parentesco
foram afetadas. A obra afetou lugares históricos e sagrados, como o famoso
Salto de Sete Quedas, localizado em Guaíra, além de cemitérios e sítios arqueológicos que servem de referência à ocupação indígena na região.
10AVÁ-GUARANI
Os Avá-Guarani mantiveram-se vinculados a seu território por meio de
deslocamentos a outros espaços, que lhes serviram de refúgio, e por outras
estratégias de resistência, inclusive nas cidades da região. Com a redemocratização do País e a Constituição de 1988, os indígenas puderam veicular
de forma crescente sua indignação com as violências do passado e reclamar
seus territórios de volta.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei n.
12.528/2011, publicou relatório que aponta algumas das violações sofridas pelos
Avá-Guarani e recomenda a adoção de medidas de reparação. No âmbito da 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, o Grupo de
Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar elegeu em 2015 a apuração das violações ocorridas no oeste do Paraná como uma de suas prioridades. O objetivo
do grupo consiste em não apenas revelar os fatos ocorridos no passado como
também assegurar a adoção de medidas de justiça de transição que permitam a
reparação pelos danos causados durante a ditadura, a restituição de territórios e
o estabelecimento de garantias de não repetição das violências praticadas.
No caso específico de Itaipu, após o recebimento no órgão de denúncia
contra as violações de direitos do povo Avá-Guarani causadas pela empresa, a
investigação foi encaminhada à procuradora-geral da República, pois cabe a
ela analisar os casos que envolvam a empresa binacional. Para colher elementos sobre o caso, a PGR designou um grupo de procuradores e servidores da
instituição, que se encarregou de analisar, em período determinado, os múltiplos aspectos referentes ao caso, no passado e no presente.
Esta publicação é, portanto, o fruto do trabalho desenvolvido por esse
grupo de membros e servidores do Ministério Público Federal para conferir subsídios à atuação da Procuradoria Geral da República quanto à denúncia de violação dos direitos do povo Avá-Guarani em decorrência da construção de Itaipu.
O trabalho do grupo, de caráter interdisciplinar, consistiu na pesquisa
documental e bibliográfica e na realização de diligências nos territórios indígenas localizados no oeste do Paraná. Nesse contexto, o diálogo com as lideranças indígenas e com pesquisadores e profissionais que já se debruçaram sobre a trajetória do povo Avá-Guarani foi fundamental para garantir uma como compreensão ampla sobre a questão.