Relatórios CEVs

RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO MUNICIPAL DA VERDADE DA CIDADE DE PETRÓPOLIS -RJ

“Qual o sentido de fazer uma narrativa de fatos e processos ocorridos há mais
de 50 anos numa cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, como Petrópolis?
De imediato podemos apontar o problema da permanente “intervenção militar”, ou para ser mais exato, da tutela militar da democracia no Brasil desde 1985,
quando o Alto Comando das Forças Armadas transferiu o exercício do poder aos
civis. Mais grave é, porém, o apoio político de massa à emergência e vitória de candidaturas de extrema-direita no presente ano eleitoral, oriundas do meio militar.
Em outros termos, nossa resposta à questão proposta é: porque o passado ainda
não é o capítulo de um livro cujas páginas possam ser viradas. Assim, no relatório
final das atividades desenvolvidas de 2016 a 2018, a Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis pretende confrontar a direitização característica de uma tendência
presente na política atual com a crítica sistemática da ditadura militar a partir do
exame do passado e, principalmente, do que se deve denominar, em comum com
as ocorrências na Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, do terrorismo de Estado.
O exame crítico do passado numa cidade do interior como Petrópolis envolve
a compreensão de sua inserção na sociedade e história do Brasil.
Conhecida como cidade imperial, a elite política e intelectual petropolitana
dominante praticamente conseguiu soterrar o conhecimento da cidade operária
que remonta há mais de um século, mediante uma estranha relação entre tradição e progresso, ocultando seu enraizamento ideológico no mais profundo reacionarismo. O viés por assim dizer “progressista” ou modernizante, não excluiu
a presença das fábricas e do trabalho, mas conseguiu – até o momento – eliminar
a luta operária da história do município. E, do conhecimento público; sobretudo
ocultar a violenta reação contra os trabalhadores por ocasião do golpe militar de
1964, mediante prisões, torturas, mortes e perseguições que permitiram a consolidação da ditadura militar na cidade nas décadas seguintes.
Quando nós, da Comissão Municipal da Verdade, em maio de 2016, iniciamos a pesquisa, ao constatar abundantes e variadas fontes disponíveis à pesquisa no Arquivo da Prefeitura e na Câmara Municipal, perguntamo-nos: por que
ninguém se debruçou sobre tais fontes para escavar o passado? Sem sombra de
dúvida, devido ao medo dos vencidos e ao silêncio dos vencedores.
[14]
O medo dos vencidos, a arrastar-se até os nossos dias, tem sua razão de ser.
Importa lembrar, neste sentido, a criação da “cidade imperial” mediante o decreto nº 85.649, assinado em 27 de março de 1981 por João Baptista de Oliveira
Figueiredo, o último general-presidente da ditadura militar. Obviamente, não se
faz menção a este decreto, para aventar um suposto projeto monárquico, completamente fora da realidade histórica. À visão de um passado atribuído ao imperador sobrepõe-se, na contemporaneidade, às imagens de Petrópolis como “jóia
serrana” e cidade pacífica.
Para o desassossego dos reacionários e conservadores tal representação coletiva foi subitamente rompida com a emergência das denúncias do funcionamento,
nela, da chamada Casa da Morte, centro secreto de tortura e aniquilamento de
presos políticos. Ressalte-se o papel e a atuação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) nesse sentido, em 2012. E que, desde então, na luta pela
desapropriação e em seguida, pelo tombamento do imóvel, permanece como um
grito de denúncia a romper e desafiar o silêncio dos vencedores.
O funcionamento deste centro de tortura e, portanto, do comprometimento
do terrorismo de Estado ali praticado somente foi possível mediante a sustentação de forças locais, particularmente de agentes do Estado e de pessoas identificadas com o integralismo, o nazismo, o anticomunismo, cultivados ao longo
de décadas. Não foi por acaso que o comando do DOI-CODI do Iº Exército
escolheu a cidade para sediar a “Casa das torturas” como inicialmente tornou-se
conhecida na imprensa local.
Ao lado do medo das vítimas e do pacto de silêncio dos criminosos importa
também mencionar a desativação do ramal da Estrada de Ferro Leopoldina, destruindo o aguerrido movimento dos ferroviários. Vale igualmente lembrar a força
corrosiva da “desindustrialização” que atingiu o setor têxtil, principal fonte de trabalho, de riqueza e de luta dos operários na cidade ao longo dos anos 1970 a 1990.
Entretanto, os velhos militantes e dirigentes faleceram e não deixaram o legado do passado para uma memória das lutas por direitos sociais. Aqui e ali os
integrantes da Comissão conseguiram ouvir algumas vozes, numa expressão da
resistência ao emudecimento imposto pelos vencedores e de enfrentamento dos
desafios políticos do presente. Diferentemente de outras comissões municipais, a
nossa não teve amplo acesso direto ao passado por meio dos testemunhos, embora as vozes escutadas contribuam para esclarecer os fatos e processos examinados
na documentação produzida pela polícia política. Essa documentação obrigounos à árdua tarefa de decifrar o passado à luz da posição antagonista.
A construção da memória coletiva é um processo inacabado e necessariamente parcial. Cada geração, de diferentes grupos sociais, retoma o passado com as
suas preocupações, que são aquelas de sua época e situação. Lidamos, porém, com
uma História truncada, inclusive pelo confisco ou mesmo, poder-se-ia dizer, do
seqüestro de arquivos documentais. Lembremos: o silêncio institucionalmente assegurado pela anistia “recíproca” imposta pelo Alto Comando das Forças Armadas implicou o “desaparecimento” de fontes de pesquisa que pudessem incriminar
[15]
os agentes da repressão em sua cadeia de comando e de execução, uma vez que
a tortura e o desaparecimento dos corpos dos presos é um crime imprescritível.
Concluímos nossas atividades enquanto Comissão Municipal da Verdade
com uma vitória importante na presente conjuntura: no dia 21 de novembro o
Conselho Municipal de Tombamento do Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico de Petrópolis deu ganho de causa à demanda da Comissão apresentada um
ano antes, tombando o imóvel que sediou a Casa da Morte. Mais do que obrigar à
manutenção das características da edificação, o tombamento confere significado
institucional para a futura construção, em Petrópolis, de um lugar da memória da
repressão e da resistência à ditadura militar.
Este relatório pretende contribuir para a memória coletiva dos trabalhadores e das organizações de esquerda a eles vinculados sob a ditadura militar. Um
combate pela História dos que persistem em lutar por direitos humanos e sociais.
Traz a escrita de fatos e processos de crimes e graves violações ocorridas do período 1964-1985, considerados, porém, parte de uma história inconclusa. Teremos
cumprido nossa missão se servirem de referência a novos estudos, a escavar metodicamente o passado. Por que a luta continua.”

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