Laudo pericial e outras revelações sobre a morte em tortura de Anatália de Souza Melo Alves
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Ela nasceu no interior de Mossoró, no Rio Grande do Norte, na cidade de Martins (região serrana do Estado), em 9 de julho do ano de 1945. Recebeu o nome de Anatália, uma espécie de equívoco ortográfico, que evidencia a pouca escolaridade dos pais, ou do tabelião. Coisas do interior, de um Brasil tão diverso e gigante, que quando se diz Natália no Sul, ecoa no Norte como Anatália e assim fica sendo.
Logo, quando tinha apenas cinco anos, a família se transferiu para Mossoró, onde ela fez o curso primário, o ginásio e, por fim, cursou o científico, concluído em 1967. Trabalhava durante o dia, na Cooperativa de Consumo Popular, para estudar à noite. Em 1966, um ano antes da formatura, se apaixonou e iniciou namoro com um bancário, Luiz Alves Neto, emprego fixo no Banco do Brasil. Dava para se casar, e assim o fizeram, em 1968. Parou de trabalhar fora de casa, dedicando-se à atividade de costureira. A vida seguia sem sobressaltos, casa popular comprada pelo financiamento do Fundo de Habitação Popular do Estado de Pernambuco (FUNDHAP), louça e mobília.
Certo dia, em 1969, Luiz chamou-a para uma conversa séria. Precisavam deixar a cidade, onde ele se sentia mal visto. Anatália questionou, quis entender melhor a decisão da transferência repentina. Neto, porém, só revelou suas ligações com o PCBR e seu papel de liderança nas Ligas Camponesas na noite do embarque. Por decisão do partido, daquele dia em diante iriam para Pernambuco. Anatália vivia seu amor pelo marido e seguiu à risca as suas orientações. Ficou na casa dos pais o tempo suficiente para vender louça e mobília – com o que arrebanhou pouco mais de “um mil cruzeiros novos” – e esperou o aviso de seguir viagem ao encontro de Luiz.
Dez dias depois recebeu uma carta do marido, dizendo que estava à sua espera em Natal. Ela embarcou às seis da manhã e juntos seguiram para Pernambuco. Era dezembro de 1969 e Anatália partira para uma vida totalmente diferente da rotina pacata de dona de casa, que vivera até então. Agora atendia pelo codinome de “Marina” e dividia um “aparelho” com “Maia”- nome adotado por Luiz, seu marido -, “Alex” e “Adriana”. Anatália havia se transformado, por amor, em uma militante de esquerda. Aos olhos do governo militar de então, numa “terrorista”.
Muitos “aparelhos” depois, o casal foi designado para uma casa próxima ao Esporte Clube do Recife. A máquina de costura foi trocada pela de escrever. Os moldes para as roupas que costurava, por manifestos. Anatália podia não ter formação política, mas seguia à risca as orientações do marido e seu grupo, no enfrentamento ao regime militar. Na luta, foi adquirindo consciência do que se passava à sua volta. A movimentação da casa, sempre com, no mínimo, três moradores, no entanto, chamou a atenção da vizinhança.
No dia 13 de dezembro de 1972, o casal foi preso junto com o militante José Adelino Ramos, o “Lino”, detido em frente ao ponto marcado nas imediações da churrascaria “Gaiola de Ouro”. Os presos foram levados, segundo descrição contida em jornal da época, fornecida pela Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, para “local desconhecido”. Pode-se imaginar pelo que passaram até serem transferidos para a sede da Secretaria, o DOPS local, em 15 de janeiro de 1973, conforme o prontuário nº 38.216, daquela delegacia. Ali, depois de devidamente fichados e de darem entrada oficialmente como presos sob a custódia do Estado, voltaram a ser barbaramente torturados.
Anatália levava uma bolsa de couro marrom, arrematada por franjas, contendo uma carteira de trabalho falsa e uma identidade também falsa (nº 79.028), em nome de Maria Lucia dos Santos. Tinha, ainda, 20 cruzeiros e trinta centavos, e as chaves de casa.
Tamanho trabalho de “convencimento” os levou, a ela e o marido, a redigir, de próprio punho, depoimentos detalhados confessando suas participações nas atividades do PCBR. Não omitiram nomes, pontos, nada, rendidos pela ação violenta dos agentes e, talvez, por um rasgo de ingenuidade, de acharem que confessando estariam a salvo de novas jornadas de tortura. Luiz Neto escapou. Anatália, no frescor de seus 28 anos, 1,58m, bom corpo, bonita para os padrões da época, foi derrubada em uma cama de campanha, numa das salas da Secretaria, e seviciada até a morte.
Prisioneira sofreu sevícia e maus tratos
Seu corpo foi entregue a um perito, que faz no laudo emitido, uma descrição, digamos, “olímpica”, do que viu no cadáver da jovem. O torso com equimoses, o pescoço com um sulco de três centímetros, evidenciando a esganadura e, o pior: suas partes pubianas com queimaduras que se estendiam até a altura inicial da coxa. O laudo descreve também hemorragia interna, nos órgãos do tórax e pulmões e conclui que Anatália morreu em decorrência de asfixia mecânica.
O delegado adjunto, Amauri Leão Brasil, responsável pela presa naquele dia, viu ali uma boa oportunidade de montar uma explicação que, a seu ver, era verossímil. Descreveu a morte da presa como “suicídio”. Aliás, não foram poucos, na época, a serem “suicidados”. Wladimir Herzog, é o mais emblemático deles, seguido do operário Manoel Fiel Filho e tantos outros que se “jogaram” sob carros pelas ruas das principais capitais do país.
Segundo a explicação do adjunto, à imprensa, que cobriu o caso sob censura, a presa teria usado a alça de sua bolsa – curtíssima, por sinal – encontrada presa ao seu pescoço para, em seguida ao pedido feito ao agente Artur Falcão Vizeu, para ir ao banheiro tomar um banho, se matar. O fato se deu às 17h20, no plantão do delegado adjunto. Segundo ele, Anatália foi encontrada morta no banheiro, de onde foi retirada para tentativas de socorro, na presença dos funcionários Genival Ferreira da Silva e Hamilton Alexandrino dos Santos, mas já estava morta.
Em uma das fotos feitas pela perícia no local, e contida no seu dossiê, a militante aparece de corpo inteiro, e há a seguinte legenda: “O cadáver jazia sobre uma cama de campanha, que se encontrava no interior do local em que funciona a Secção do Comissariado da Delegacia de Segurança Social da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública de Pernambuco”. Ou seja, muito próximo ao poder do Estado. Em dependências vizinhas à sala do delegado de plantão, e não no banheiro, conforme descreveu o Dr. Delegado.
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AS FOTOS FALAM, negar é crime maior do que foi este, cometifo por covardes e hipócritas agentes PÚBLICOS.
Parabéns Comissão da Verdade de PERNAMBUCO, por resgatar a dignidade roubada da ANATÁLIA DE SOUZA MELO ALVES , por
covardes agentes publicos que trairam interesses que eram obrigados a sustentar, que cometeram essas BARBÁRIES
DIGNAS DE NAZISTAS.