Fundo Aluízio Palmar

Falando um pouco de mim

Eu nasci em 24 de maio de 1943 em São Fidélis, Estado do Rio de Janeiro. Cursei o primário e o ginásio em minha cidade natal, o colegial em Niterói e fiz dois anos de Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense. Acuado pela repressão e, tal como muitos de minha geração e militância revolucionária, abandonei a faculdade e passei a lutar na clandestinidade. Em  04 de abril de 1969,  fui preso e banido do país. Com a anistia voltei ao Brasil e me radiquei em Foz do Iguaçu (PR), onde comecei minhas atividades como jornalista profissional trabalhando no semanário Hoje Foz.
Em 1980, criei o semanário Nosso Tempo, conhecido por sua linha editorial rebelde e alternativa e atuei ainda em outros meios de comunicação do Paraná.

 Trajetória

Eu tinha 17 anos quando ingressei no Partidão (Partido Comunista Brasileiro), mas minha aprendizagem começou na adolescência. Antes de completar 15 anos, já havia lido A Mãe, de Gorki, algumas obras de Graciliano Ramos e também de Jorge Amado. Eu tomava os livros emprestados do doutor Cunha, um geólogo que pesquisava o solo rico de malacacheta de São Fidélis.

Meu primeiro contato com o marxismo aconteceu em 1958. Foi por intermédio de um grupo de operários calceteiros que pavimentava com paralelepípedos as ruas da cidade. Eles pertenciam a uma base do PCB da vizinha cidade de Campos.

No início de 1959 mudamos para São Gonçalo, cidade localizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. São Fidélis não oferecia condições para que eu e meus irmãos continuássemos nossos estudos. Papai era comerciante de secos e molhados e queria que seus filhos tivessem o estudo que ele não teve. Aquela ruptura com o interior para viver nas proximidades do Rio de Janeiro nos assustava e ao mesmo tempo atiçava nossa curiosidade de como seria a vida numa cidade grande, o mar e a correria do dia-a-dia.

Naquele mesmo ano eu fui fazer o científico no Colégio Plínio Leite, em Niterói. Saía de casa às seis horas da manhã e apanhava o trem suburbano numa parada chamada de Ponto de Cem Reis. Apesar de haver linhas de ônibus e bonde ligando o bairro de Alcântara a Niterói, o trem era a condução mais em conta para os estudantes pobres e operários que iam trabalhar nos estaleiros e metalúrgicas.

Embora fossem considerados a elite operária da época, os navais, ou marítimos, viajavam no mesmo trem, talvez porque ele os deixava próximo aos locais de trabalho. Trabalhar em um estaleiro significava melhorar o padrão de vida, ter boa casa e poder dar continuidade aos estudos dos filhos após eles terminarem o primeiro grau.

A indústria naval em Niterói recebeu seu grande impulso durante o governo JK. Com o avanço da construção naval surgiram as escolas técnicas, como o Senai e o Henrique Lage, e os jovens entraram nos estaleiros com teoria e independência profissional. Por esse caminho trilhou Helinho Ribeiro Pinto, amigo da fase anterior à minha entrada no PCB, e Nielse Fernandes, companheiro de preparação de guerrilha do Oeste do Paraná. Helinho estudou no Henrique Lage, já Nielse, no Senai.

Niterói era nossa praia e ali acontecia o inusitado em um país que a gente procurava entender lendo as publicações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Naquele quarto ano do governo de Juscelino Kubitschek, o país se debatia numa tremenda inflação, havia escassez de alguns produtos alimentícios e muita tensão social, principalmente na área de Estação das Barcas, onde constantemente era grande o número de pessoas que atravessaram a Baía da Guanabara para trabalhar na cidade do Rio de Janeiro.

Todos os dias uma extensa fila tomava conta da Praça Araribóia e, depois de dar várias voltas, seguia pela Rua da Praia em direção ao Mercado São Pedro, que naquela época entrava mar adentro. Desde as primeiras horas da manhã, operários, executivos, escriturários, trabalhadores de serviços gerais e empregadas domésticas se amontoavam esperando a condução.

O péssimo serviço prestado pela empresa concessionária do transporte marítimo entre Niterói e Rio de Janeiro deu origem, em maio de1959, auma revolta popular de grande envergadura. O que havia começado como um protesto localizado acabou propagando-se por toda a cidade e assumindo um aspecto de insurreição. A manifestação começou pela manhã, atravessou a noite e o saldo foi a depredação da estação das barcas, intervenção militar, seis mortos e uma centena de feridos.

Eu participei ativamente da rebelião das barcas, que por sua vez teve uma grande influência em meu processo de conscientização. Durante a revolta popular, chamou minha atenção a atitude democrática e de solidariedade com a massa trabalhadora tomada pelo então governador fluminense Roberto Silveira, um dos mais influentes políticos do PTB. Roberto morreu em 1961, aos 37 anos de idade, num trágico acidente de helicóptero. Nesse mesmo ano participei de um concurso literário que teve Roberto Silveira como tema, no Colégio Plínio Leite, de Niterói, e o meu texto obteve o primeiro lugar.

Eu cursava o científico e de cara, assim que entrei no colégio, comecei a fazer política estudantil e editei um jornalzinho, juntamente com um grupo de colegas. Apesar de ter saído do interior, me dei bem graças aos livros emprestados pelo doutor Cunha, aos ensinamentos dos calceteiros campistas e aos cadernos editados pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros.

O ISEB foi criado em 1955 por um grupo de intelectuais cuja visão era de que o Brasil só poderia ultrapassar a sua fase de subdesenvolvimento pela intensificação da substituição das importações por meio da industrialização do país. A política de desenvolvimento deveria ser nacionalista, a única forma capaz de levar à emancipação e à plena soberania. Sua implementação introduziria mudanças no sistema político. Em um país de economia desenvolvida, a nova liderança política deveria ser representada pela burguesia industrial nacional, que teria o apoio do proletariado, dos grupos técnicos e administrativos e da intelligentsia. Em oposição a esses grupos estavam os interesses ligados à economia de exportação de bens primários e os importadores de máquinas e manufaturados

A partir da identificação dos dois grupos defensores de interesses divergentes, o ISEB propunha a formação de uma “frente única” integrada pela burguesia industrial e seus aliados, para lutar contra a burguesia latifundiária mercantil e o imperialismo. Resumindo, a luta seria travada entre nacionalistas e “entreguistas” – aqueles cuja tendência era vincular o desenvolvimento do Brasil à potência hegemônica do capitalismo, os Estados Unidos.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, minha militância no movimento estudantil de Niterói era intensa. Mais uma vez a então capital do Estado do Rio se mobilizou, dessa vez para defender a legalidade, ameaçada pela tentativa de impedir a posse de João Goulart. Esse fato impulsionou o movimento de massas e elevou o nível de consciência dos trabalhadores. Naqueles dias a trincheira de luta era no Sindicato dos Operários Navais, localizado no bairro de Barreto, e lá estávamos reunidos esperando as ordens do Comitê Central do Partido.

Depois de muitas manifestações públicas e greve geral, os militares golpistas recuaram e João Goulart tomou posse. Foi uma meia vitória, pois os poderes do presidente foram limitados pelo sistema parlamentarista. Veio o plebiscito em 1963 e mais uma vez a mobilização nacional venceu a direta golpista e o Brasil voltou ao presidencialismo.

Naquele início da década de 60 eu circulava entre as várias facções de esquerda que existiam em Niterói, procurando respostas às minhas inquietações.  De um lado estava o Partidão e o ISEB com sua teoria nacional desenvolvimentista e a frente única contra o imperialismo; de outro a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-Polop), as Ligas Camponesas, o Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) e o PC do B (partido Comunista do Brasil). Após as aulas e até mesmo durante elas eu conversava intensamente com os comunistas do PC do B – esse partido estava sendo formado pelos stalinistas expulsos do Comitê Central do PCB – e com os trotskistas do PORT.

Foi por intermédio do Helinho Ribeiro Pinto que eu tive acesso à teoria da revolução permanente de Leon Trotski e às análises do uruguaio J. Posadas, publicadas no semanário Frente Operária . Helinho também estudava no Colégio Plínio Leite e era um trotskista com panca de livre-pensador. Andava com o pessoal do PORT, mas conversava com todo mundo e fugia do estereótipo do trotskista bitolado. Nosso grupo era eu, de esquerda, mas sem vínculo orgânico com os partidos políticos da época, o Helinho e Daniel Callado, que mais tarde foi para o PC do B. Daniel morava no Cubango, onde seu pai, Consueto Callado, possuía uma barbearia, e Helinho no Viradouro. Ambos eram mecânicos e trabalhavam na Companhia Auxiliar de Construção e Reparos Navais, a Cacren, na Ponta d’Areia, Niterói.

Callado foi para o Araguaia em 1972 e lá morreu em 1974. Helinho saiu do Brasil em 1966, clandestino num navio, passou vários anos na Noruega, Canadá e outros países. Desembarcou um dia na Colômbia e voltou ao Brasil cruzando a fronteira, depois de uma caminhada de três anos pela floresta. Seguiu viagem durante seis dias rio abaixo até Manaus, depois até Belém, onde permaneceu algum tempo lecionando inglês. Juntou algum dinheiro e voltou para sua casa, no bairro de Riodades, Niterói, indo trabalhar em seguida como mecânico de equipamentos de perfuração de poços petrolíferos.   Naqueles primeiros anos da década de60 agente passava horas nas esquinas de Niterói falando de revolução e marxismo. Nossos pontos de encontro eram em frente dos cinemas da Rua da Praia – Edem, Odeon e Central – ou então debaixo das marquises dos edifícios da Avenida Amaral Peixoto.

Nós não tínhamos dinheiro para sentar à mesa de bar, éramos trabalhadores assalariados, cheios de contas e vivendo num país devorado pela inflação. Helinho e Daniel eram metalúrgicos, enquanto eu trabalhava como auxiliar de escritório na sede da Companhia Internacional de Seguros, situada na Rua Sete de Setembro, em frente da Livraria e Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira.

Apesar de passar horas conversando com meus amigos, discutindo a revolução mundial, acabei não indo nem para o PORT e nem para o PC do B. Naquele momento eu estava convencido de que o caminho para o socialismo seria pacífico e as reformas de base de Jango iriam libertar as forças sociais que transformariam o país. Como eu conhecia muita gente do PCB, principalmente o pessoal da base do Liceu Nilo Peçanha, acabei ingressando no Partido. A partir de então, além dos trotskistas e dos “chineses” (assim eram chamados os maoístas do PC do B) do Barreto, Neves, Fonseca e São Gonçalo, meu círculo de amigos foi ampliado pelos comunistas do PCB dos bairros de Santa Rosa, Ingá, Icaraí e Saco de São Francisco, quase todos oriundos de uma classe média cuja renda era devorada pela inflação.

Naquela altura do campeonato, não bastasse eu ainda morar em São Gonçalo, trabalhar no Rio e estudar em Niterói, já não viajava mais no sucatado trem da Leopoldina. Passei a andar de bonde, de ônibus e de trólebus, que era um ônibus elétrico; dependendo é lógico, de quanto havia sobrado do salário minguado ou do que havia restado da féria na gaveta do armazém de papai.

Os dois anos seguintes passaram rapidamente, talvez devido à intensidade de minhas atividades como dirigente estudantil em Niterói, membro do Comitê Municipal do Partido Comunista Brasileiro – PCB – e um dos responsáveis pela implantação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), na Baixada Fluminense. O PNA foi um amplo programa de alfabetização de adultos e seu sistema pedagógico era o método Paulo Freire. Os núcleos eram instalados em escolas, associações de moradores, templos religiosos, terreiros de umbanda e casas particulares. Interagir o aprender a ler e a escrever com a tomada de consciência dos problemas da comunidade, da cidade, do estado, do país e do mundo era a mensagem que a gente divulgava nos bairros de baixa renda da Baixada.

Niterói era um grande laboratório, onde idéias e práticas sociais das mais variadas vertentes fluíam intensamente. Trabalhistas, nacionalistas, comunistas e trotskistas conviviam e disputavam espaços nos colégios, na universidade, nos estaleiros, nas metalúrgicas, no comércio, repartições públicas, bancos e sindicatos. Tudo que Lacerda proibia e perseguia do outro lado da Baía da Guanabara era permitido em Niterói. De um lado era o Estado da Guanabara governado pela direita, e do outro o Estado do Rio democrático. Na Guanabara as Ligas Camponesas não podiam fazer suas assembléias; no Estado do Rio sim.

José Pureza, dirigente da Federação dos Lavradores e Trabalhadores Rurais do Estado do Rio de Janeiro e líder dos sem-terra na Baixada, montou um grande acampamento no Jardim de São João, centro de Niterói, em protesto contra a perseguição a que era vítima pela polícia lacerdista. Na Guanabara, Lacerda proibiu a realização do Congresso Latino-Americano de Solidariedade a Cuba; no Estado do Rio o congresso foi realizado no Sindicato dos Operários Navais, e em seu encerramento Luiz Carlos Prestes discursou dizendo que o Brasil caminhava a passos largos em direção ao socialismo e que os comunistas tinham participação importante no governo. Enquanto Prestes exalava otimismo, Brizola alertava para a conspiração da direita e conclamou para a resistência aos golpistas.

   E aí  veio o Golpe    

EM 1963 E 1964 O BRASIL começava a pensar por si mesmo, a tomar consciência de seus problemas e de como resolvê-los por conta própria. Parecia que o país inteiro estava ficando mais inteligente. Em todos os cantos, nos botequins e salas de aula, nos papos da fila do ônibus, na saída do cinema, na praia, todo mundo tinha idéias novas, questionava e queria descobrir o que estava errado com o Brasil. As pessoas estavam conscientizando-se e acreditavam que as mudanças eram possíveis.

No dia 13 de março, mais de cem mil pessoas se concentraram no Comício da Central. O presidente João Goulart afirmou para a multidão que era chegada a hora das reformas e que as estruturas do país estavam ultrapassadas e não poderiam mais realizar o milagre da salvação nacional de milhões de brasileiros. Ainda no Comício Pró-Reformas de Base, Jango disse que “a maioria dos brasileiros não se conforma com a ordem social vigente, imperfeita, injusta e desumana”.

Foi então que aconteceu o golpe militar patrocinado pelas elites econômicas e políticas brasileiras que viam no governo João Goulart uma ante-sala para a instalação de um regime comunista no Brasil. Na exacerbação da luta de classes e paranóia da Guerra Fria, as propostas de reformas de base do governo foram atropeladas por tanques e fuzis, sob o aplauso entusiasmado de empresários, fazendeiros, grande parcela da Igreja Católica e da classe média. Ruas e praças foram ocupadas por tropas do Exército e os agentes policiais corriam de um lado para outro em busca dos perigosos agentes de Moscou, Pequim e Havana. Para evitar que eu fosse preso, meu pai me levou às escondidas para o sítio do tio Antônio, na Serra da Venturosa, em São Fidélis, interior do Estado do Rio.

Levei um radinho transistorizado e por ele acompanhei os anúncios de cassações de mandatos e os atos institucionais. A vilania havia sido instaurada no Brasil. Apesar dos carinhos e atenção do tio Antonio, da tia Rosária e de meus primos, decidi voltar para Niterói para restabelecer contatos e ajudar a organizar a resistência contra os golpistas. As notícias, porém, não eram alentadoras. Havia gente presa até nos navios e no Ginásio Caio Martins, e a ordem do Comitê Central era de recuar para preservar o Partido.

Mais uma vez recuei para o interior e dessa vez foi mamãe que me levou. Fui parar em Conceição da Boa Vista, uma vila situada na Zona da Mata, em Minas Gerais. Levei comigo as Obras Escolhidas, de Karl Marx, publicação da Editorial Vitória, e meus dois long-plays de cabeceira, um de Sérgio Ricardo e outro de Nara Leão. Na vila procurei colocar-me a par do que acontecia no Rio de Janeiro lendo os artigos de Carlos Heitor Cony, publicados no Correio da Manhã. O Geraldo da Padaria era assinante do jornal e meu cúmplice naquela resistência silenciosa feita entre cestos de pão francês e rosquinhas.

Esse meu recuo mineiro não durou muito tempo. Antes de completar quatro meses do golpe militar eu voltei para reorganizar as bases do Partido. Minha primeira tarefa foi a de tirar todo material do Partido dos apartamentos e casas onde moravam membros do Comitê Estadual e do Comitê Central. Num deles – o de Lindolfo Silva – recolhi uma das mais completas bibliotecas sobre problemas agrários no Brasil. Carreguei os livros com estantes e tudo para São Gonçalo. Mais tarde, em 1969, agentes do DOPS invadiram a casa de meus pais e levaram todos os livros.

Nos primeiros anos de ditadura mantive minhas ocupações legais; estudava em Niterói, trabalhava no escritório de uma transportadora situada no bairro de Santo Cristo, no Rio de Janeiro, e morava na pensão de dona Anita, um sobrado antigo na Rua Presidente Pedreira, bairro do Ingá. No quarto compartilhado com Antônio Carlos Pinto, o Carlitos, eu passava horas imprimindo folhetos e um jornalzinho intitulado Resistência num “reco-reco”, espécie de equipamento artesanal que usa o mesmo sistema de silk-screen para reprodução por meio de  stencil. Tinha a vantagem de ser barato, silencioso e pouco volumoso, o que era uma grande vantagem naqueles tempos.

Para não incomodar Carlitos com a minha bagunça, eu aproveitava para fazer as impressões durante as suas saídas noturnas ou então quando ele ia à praia. Apesar de meus cuidados, era comum Carlitos chegar e encontrar papeis esparramados pelo chão e em cima das camas. Fazia cara feia, mas no fundo não se importava. Era um sujeito extremamente decente e solidário, além de ser membro da base do PCB na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Um dia ele me disse que não era justo eu pegar três ônibus e mais a barca para chegar ao emprego, trabalhar o dia todo, estudar à noite e passar horas imprimindo e distribuindo o material clandestino para a militância do PCB. Prometeu arrumar-me um emprego no banco onde ele trabalhava. Dito e feito: alguns dias depois eu pedi demissão da transportadora e fui trabalhar no Banco Pareto, que era localizado nas proximidades da Praça XV, com meio expediente e recebendo um salário maior.

A partir desse novo emprego comecei a ter tempo até para ir à praia pela manhã e à noite reunir-me com a turma na pracinha de Icaraí. Esse era o nosso ponto, onde a gente falava de marxismo e revolução. Daquele grupo saiu boa parte dos membros da Dissidência Comunista de Niterói, mais tarde MR8. Outros não seguiram a gente, expuseram suas divergências e adotaram outras formas de luta contra a ditadura.

Em 1967 me desliguei do emprego e passei a ser funcionário do Partido. Minha tarefa era reorganizar as bases do Estado do Rio, e para tal eu e Apolônio de Carvalho, um antigo dirigente do PCB, que lutou na Guerra Civil Espanhola, viajávamos seguidamente ao interior, amealhando os quadros esparsos, reunindo as bases e coordenando as eleições para os comitês e executivas municipais. Nas “horas livres”, ou seja quando não havia viagem eu “dava aulas de marxismo” para grupos de adolescentes de São Gonçalo.

Ao mesmo tempo em que eu desenvolvia essas tarefas, editava, juntamente com Nicolau Abrantes o mensário Avante, órgão oficial do Comitê Estadual do Rio de Janeiro. Além de ajudar a escrever, eu levava para o Rio os textos datilografados numa Remington, já bastante desconjuntada, e distribuía para os linotipistas militantes ou simpatizantes do Partido.

Passados alguns dias lá ia eu de novo percorrer as gráficas de São Cristóvão para apanhar as matrizes de chumbo e levá-las no meio da noite para impressão. Depois de pronto eu levava o jornal tamanho ofício para Niterói.

Chegamos a tirar cinco edições do Avante. Geralmente o seu conteúdo era escrito por Apolônio de Carvalho, Nicolau Abrantes e Miguel Batista. Na maior parte das vezes os três  dirigentes contestavam as Teses do Comitê Central para o VI Congresso do Partido. Além desse material, que era interno, o jornal tinha matérias sobre as lutas do movimento operário e estudantil de Niterói, além de denúncias contra a ditadura.

A opção pela luta armada  

Desde o golpe nós estávamos envolvidos no debate sobre a linha política a ser seguida. A luta interna era intensa e os setores universitário e secundarista romperam de cara com a posição nacional desenvolvimentista defendida pela direção. Juntamente com alguns quadros operários navais, começamos a caminhar em direção a opção pela etapa socialista da revolução brasileira e a luta armada.

A disputa era tão extremada que para me afastar dos debates os medalhões me ofereceram uma bolsa de estudos na extinta República Democrática Alemã. Apolônio chegou a marcar o dia de minha viagem e me mandou tirar passaporte. Não topei. Com o passar dos dias os debates internos foram radicalizando-se e as dissidências do PCB em vários estados começaram a defender que a revolução não seria nacional-democrática, nem nacional-popular, mas sim socialista. Para fundamentar, nós esgrimíamos a obra de Caio Prado Júnior, “A revolução Brasileira”.

Lançado em 1966, o livro de Caio Prado era uma crítica incisiva à tese do PCB sobre a existência de uma burguesia nacional antiimperialista. Além dessa base teórica, nós nos inspiramos na experiência revolucionária de Cuba para defender que era possível fazer a revolução socialista a partir do foco guerrilheiro. Nós conhecíamos a teoria do foco através dos escritos de Che Guevara, mas foi a fotocópia de um livrinho mimeografado que o Umberto Trigueiros Lima conseguiu com o pessoal da Polop e me entregou certo dia no campo de São Bento, em Niterói, que suscitou nosso entusiasmo para “subir a serra”. O livrinho era Revolução na Revolução, do teórico francês Régis Debray. Sentei-me no banco da praça, li de supetão a brochura e disse pro Umberto: “É isso aí, está tudo escrito aqui”.

Debray havia resumido e sistematizado da seguinte forma a teoria guevarista: o foco se iniciava com um punhado de homens e se punha a atuar entre camponeses de uma região cujas condições naturais favorecessem a defesa e ataques relâmpagos às forças do Exército.  Numa segunda etapa, colunas guerrilheiras se deslocariam da região inicial, levando a luta armada a outras regiões. Outra novidade foi a idéia da primazia do fator militar sobre o fator político e da prioridade do foco sobre o partido. Inspiradas no foquismo, guerrilhas fervilhavam na Colômbia, Venezuela, Peru, Guatemala e Nicarágua. Na Venezuela a guerrilha era organizada pelo Partido Comunista Venezuelano e começou a operar em 1962, tendo como principal dirigente Douglas Bravo. Na Colômbia as guerrilhas começaram a atuar em 1964, destacando-se como dirigente o padre Camilo Torres, morto em 1966. No Peru, o mais conhecido dirigente guerrilheiro foi Hugo Blanco, da Frente de Izquierda Revolucionária, de tendência trotskista, cujas ações se desenvolveram entre 1961 e 1964.

E foi no embalo do guevarismo e das guerrilhas que pipocavam pela América Latina que tentamos tomar os fuzis do Tiro de Guerra de São Fidélis, minha cidadezinha do Norte do Estado do Rio. Sem maiores preparativos fomos eu, Nielse Fernandes e Carlos, um venezuelano que, segundo informações, não me lembro de quem, havia pertencido às Forças Armadas de Libertação Nacional da Venezuela. Ficamos os três em casa de velhos amigos e simpatizantes de nossa causa. Fizemos o levantamento do Tiro de Guerra e planejamos a evacuação. O plano era levar as armas Rio Paraíba abaixo até Campos dos Goytacazes, camufladas nos barcos que transportavam banana. Em Campos, as armas seriam descarregadas e depositadas na casa de plano era bom, só que tinha um furo: os rifles que o Exército mandava para os Tiros de Guerra não possuíam ferrolho. Ainda bem que desistimos, pois se a ação fosse executada meus amigos de São Fidélis seriam presos. Por amadorismo expusemos em demasia o José Teófilo, o Jaime Pontes (mais conhecido por Olé, o Perazzo Machado, o Constante Churchil, o Marcus Ferraioli e o Márcio, um bioquímico cujo nome completo não me lembro.

Muitas vezes a gente acaba expondo os amigos, devido à nossa irresponsabilidade e à fragilidade das organizações de esquerda. Foi o que aconteceu um ano antes, quando eu fui com o Bernardo Ferreiro, companheiro do Partidão de Niterói, “tomar” a Rádio Difusora de São Fidélis. Depois de seis horas de viagem fomos direto para a rádio carregando discos com música de protesto e um belo e retumbante discurso na ponta da língua. No estúdio apenas meu amigo Valdir Vieira, que já me esperava para fazer uma proclamação contra a ditadura. Rodamos a primeira música, Maria Moita, de Carlos Lyra, e quando eu me preparava para soltar o improviso chegou o dono da rádio com um pedaço de pau nas mãos e bradando palavrões contra os “comunistas, agitadores e subversivos”. Disse que ia entregar-me para o DOPS, que os militares iam prender-me quando eu chegasse a Niterói, patati patatá. Saímos disparados da rádio e na estação rodoviária apanhamos o primeiro ônibus para Campos, e de lá outro para Niterói.

Minha permanência na legalidade estava ficando inviável, ainda mais depois do famoso Baile do Esqueleto, realizado em fevereiro de 1967, no Sindicato dos Operários Navais. Oficialmente o baile havia sido organizado pela União Fluminense de Estudantes e pelo DCE, mas por trás estávamos nós, os dissidentes do PCB, arrecadando fundos para a instalação de uma gráfica clandestina.

Nós já havíamos retirado o dinheiro da bilheteria, quando a massa estudantil começou a cantar a paródia da marchinha Máscara Negra, de Zé Kéti, que era mais ou menos assim: Quantas tiras/Oh! Quantos milicos/Mais de mil gorilas em ação/Estudantes desfilando pelas ruas da cidade/Gritando por liberdade…

Não deu outra: os agentes do DOPS baixaram no sindicato, ocorreram várias prisões e os camburões seguiram lotados para a chefia da polícia, localizada na Avenida Almirante Amaral Peixoto. Com a grana arrecadada no baile viajei para Campos e comprei uma máquina impressora sucateada e desmontada. Descarreguei tudo no quintal da casa de meus pais e aquele monte de peças ficou ali durante quase dois anos. Abandonamos o plano do jornal de massas com a nossa opção de “subir a serra”, e depois da nossa prisão a gráfica clandestina foi de vez “pro quiabo”. Acabei mandando meus irmãos venderem a sucata da impressora no ferro-velho.

Ainda em 1967, durante a organização do Seminário Regional Leste da União Nacional dos estudantes (UNE), eu senti que a repressão controlava meus passos e que em qualquer momento seria preso. A gota d’água aconteceu quando eu e Sebastião Velasco Cruz tivemos um confronto com um agente do DOPS infiltrado no curso de Geografia da UFF.

Na época, por motivo de segurança e para não comprometer meus familiares, raramente eu ia para casa. Depois do quarto de pensão no bairro do Ingá, fui morar, juntamente com Carlitos e Getúlio Gouveia, ambos militantes do PCB, em um apartamento no bairro de Icaraí, na antiga capital fluminense. Apesar dessa cautela, agentes da repressão invadiram a casa de meus pais em São Gonçalo e meu irmão Evaldo foi preso e levado para o DOPS, em Niterói. Mais tarde foi a vez de meu irmão caçula Ivan, que na época tinha apenas 15 anos, ser preso e interrogado por agentes da repressão política na delegacia de polícia de Alcântara, em São Gonçalo.

Naquele mesmo ano abandonei a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Federal Fluminense, onde cursava Ciências Sociais, e passei a morar no Oeste do Paraná. Eu estava demasiadamente queimado para continuar no trabalho de massas, e, como dirigente da Dissidência Comunista, responsável pela implantação de um foco guerrilheiro no Oeste do Paraná, não era recomendável minha permanência no Estado do Rio.

Enquanto a repressão me caçava desesperadamente no Estado do Rio, eu fui passar uma temporada no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp) e tentar uma aproximação entre nosso grupo e os dissidentes de São Paulo. Com o apoio de Jeová de Assis Gomes e Fernando Ruivo, eu fazia reuniões constantes com os rebeldes das seções paulista, paranaense e gaúcha do Partidão. Esses contatos e mais os que eram feitos pelo pessoal que ficou em Niterói acabaram não resultando na tão esperada fusão das organizações da esquerda revolucionária. Alegando que era cedo para ir “pro mato”, o que no jargão da época significava fazer o foco guerrilheiro, os paulistas seguiram Marighela e criaram a Ação Libertadora Nacional (ALN); os gaúchos foram para o Partido Operário Comunista; e nossos aliados em Niterói acabaram indo para o Comando de Libertação Nacional (Colina). Apenas a Dissidência Comunista do Paraná ficou conosco, e mesmo assim por pouco tempo.

 Guerrilha do Oeste do Paraná

NO OUTONO DE 1968 desembarquei na rodoviária de Foz do Iguaçu carregando uma imensa mala de couro, com manuais de guerrilha, livros de Regis Debray e Che Guevara, mapas da região, um revólver 38, um rifle de ferrolho e alguma munição. Fábio Campana me hospedou num quartinho nos fundos da Padaria Progresso, do paraguaio Rodolfo Mongelos, localizada na Avenida Brasil. Começaram então os contatos da dissidência comunista do Estado do Rio com os colorados de esquerda.

Alguns dias depois Nielse Fernandes chegou a Foz trazendo uma pistola, medicamentos, material para acampar e soro antiofídico. Agora era pra valer: Nielse era um quadro extremamente prático e sua capacidade de construir ia de uma jangada a qualquer artefato que exigisse conhecimentos de mecânica ou eletricidade.

Enquanto os companheiros que ficaram no Rio e em Niterói participavam de expropriações de bancos, nós começamos a fazer o reconhecimento da área onde deveriam ocorrer as lutas do foco guerrilheiro da Dissidência Comunista, que mais tarde deu origem ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Foram quase dois anos de andanças pelas estradas do Oeste do Paraná, levantando rios, riachos, pontes, pontilhões, áreas de conflitos sociais, postos policiais e outros prédios públicos.

Participei durante meses, junto com Nielse e Bernardino, dessas caminhadas pelas estradas de chão batido da região. Eu, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense; Nielse Fernandes, operário naval de Niterói, e Bernardino Jorge Velho, ex-sargento do então 1º Batalhão de Fronteiras de Foz do Iguaçu e quadro rural do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Conheci o Bernardino por intermédio do Fábio Campana, que também havia rachado com o PCB e organizado a dissidência Comunista no Paraná. A admirável facilidade que o “Bigode Branco” tinha para comunicar-se com as pessoas me impressionou desde o nosso primeiro encontro. Graças a ele montamos uma extraordinária rede de apoio para a futura guerrilha, constituída por pequenos proprietários rurais, posseiros, meeiros e peões. Só os mais íntimos o conheciam pelo nome de batismo. Por onde a gente andava todos o chamavam de “Bigode Branco”. Aliás, aquele bigode ralo, metade branco e metade preto, era sua marca característica. Bernardino se negava a tingi-lo e só fez no final de 1969, quando a organização foi desmantelada e ele foi viver clandestino em São Paulo. Nunca chegou a ser identificado pela repressão, que nas sessões de tortura queria que disséssemos quem era o homem de bigode branco, conhecido na luta revolucionária pelo nome de guerra de “Santos”.

Eu só revi o Bernardino em 1993, quando ele veio visitar o filho em Foz do Iguaçu e tentar reaver seu sítio que teria sido grilado por um rico madeireiro da região Oeste do Paraná. Nesse encontro recordamos acontecimentos que o passar do tempo e o rigor da clandestinidade haviam apagado de minha memória. Lembramos nossas andanças pelos caminhos daquela que nos planos da organização seria a área do foco guerrilheiro, como em certa ocasião quando nos deparamos com a morte por enforcamento de dezenas de camponeses, ocorridas na fazenda dos Mesquita, localizada na região da Ponte Queimada.

Em outra ocasião fomos conversar com os trabalhadores da Fazenda Rami, em Matelândia, e ficamos chocados com a exploração a que eram submetidos os empregados. Muitos deles tinham os dedos decepados pelas máquinas, conhecidas como “periquitos”, nas quais eram desfibradas as hastes do rami, uma planta cuja fibra é utilizada na fabricação de tecidos, cordas e barbantes.

A jornada de trabalho era estabelecida em regime de 12 horas por dia e o pagamento feito por meio de vale-barracão. Os trabalhadores estavam sempre endividados com o dono da fazenda – também dono do armazém, onde os produtos eram duas ou três vezes mais caros do que na cidade. Havia um esquema de segurança extremamente rígido e aqueles que eram apanhados em fuga sofriam castigos físicos.

Na noite que passamos no dormitório dos trabalhadores solteiros da Fazenda Rami, falamos de liberdade, socialismo e revolução. Quando fomos embora, antes do dia amanhecer, muitos daqueles peões queriam ingressar na guerrilha. Desconversamos e saímos de fininho. Ainda não era a hora para aquele tipo de recrutamento.

A Dissidência Comunista do Estado do Rio foi a única das organizações político-militares oriundas do PCB que tentou pôr em prática ao pé da letra a proposta guevarista do foco guerrilheiro. Nós éramos extremamente sectários na defesa da teoria de que um grupo de combatentes enraizados numa área rural, com um mínimo de infraestrutura e combatendo esporadicamente, poderia mobilizar o país para a luta contra a ditadura e pelo socialismo.

Foi para pôr em prática esse projeto que eu, Nielse Fernandes, Milton Gaia Leite, operário naval de Niterói, Bernardino Jorge Velho, César Cabral, comerciante de Foz do Iguaçu, e João Manoel Fernandes, estudante de Curitiba, ficamos quase um ano internados no Parque Nacional do Iguaçu. Nosso instrutor era o paraguaio Rodolfo Ramirez Villalba, membro da Frente Revolucionária Colorada (FRC) e conhecedor das técnicas de combate das guerrilhas .

Os primeiros contatos da Dissidência com a FRC, uma espécie de agrupamento de esquerda dentro do Movimento Popular Colorado (Mopoco), foram feitos por intermédio de César Cabral, que veio em definitivo para Foz do Iguaçu alguns anos antes de nossa chegada à região. Ele estudava economia na Universidad Del Nordeste, na Província do Chaco, Argentina, e devido à sua militância de esquerda passou a ser perseguido naquele país. Em Foz, César foi ajudar o pai a tocar um açougue e em pouco tempo fez amizade com o Fábio Campana, que passava uma temporada com a família. O clima político em Curitiba estava carregado e Fábio vinha sendo ameaçado em virtude de suas atividades no meio estudantil.

Durante meses os dois “exilados” devoraram livros e mais livros e passaram por momentos de inquietação tal como todos os jovens politizados daquela época.

Quando cheguei a Foz do Iguaçu no outono de 1968 com a missão de entrar em contato com o Fábio, ele e César estava estudando o 18 Brumário de Bonaparte, de Karl Marx e A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior.

Daquele período de preparação para os combates que não aconteceram ficou gravada em minha memória a solidariedade de nossos contatos camponeses. Que tempo, meu Deus! Vez ou outra a gente saía do meio do mato para jantar no rancho de seu Pedro Gordo. No meio da noite, equipados de coturnos, mochilas, rifles e fuzis, atravessávamos a BR-277, na altura de Tatu Jupy, e éramos recebidos com um bufê de galinha caipira, pirão, arroz, feijão e mandioca, que fumegava no fogão à lenha, feito de tijolo e argila.

Esses apoios vinham de todas as direções e nos momentos de maior sufoco transmitiram segurança ao grupo e revitalizaram nossas convicções. Quando chegávamos a Vera Cruz do Oeste, perto de Cascavel, por exemplo, dona Astra Fruet e seu Artur nos ofereciam o celeiro para passar a noite. Era um luxo deitar naquela montanha de arroz ainda sem descascar. Luxo porque na maioria das vezes dormíamos no meio das roças, como em certa ocasião quando fomos fazer uns contatos em Pato Bragado. Na volta para Foz do Iguaçu, um pouco antes de Itacorá (lugarejo que hoje está submerso pelas águas do Lago de Itaipu), começou a chover as pampas. Paramos no meio de uma plantação de menta e deitamos entre as toras espalhadas pela área recentemente desmatada. Naquela noite, dentro de nossos sacos de dormir, com o fecho ecler puxado até o queixo, pegamos no sono embalados pelo barulho da chuva e suave aroma de hortelã.

Em março de 1969 resolvemos desativar a área do foco, desmobilizando nossos quadros e a infraestrutura, que se resumia a dois sítios. Essa decisão foi tomada por desconfiarmos de que a área estava queimada. Além de termos várias evidências de que a repressão estava de olho em nosso trabalho, foi determinante também a queda em Niterói, em fevereiro de 1969, de Lizt Benjamim Vieira, Vera Wrobel e Clarisse Chonchol, todos militantes dos Comandos de Libertação Nacional – Colina. Na seqüência dessas prisões várias pessoas passaram a ser caçadas pela repressão, entre elas eu e Umberto Trigueiros Lima, um dos dirigentes do núcleo urbano da Dissidência Comunista do Estado do Rio.

 Minha prisão

FUI PRESO NO DECORRER dos trabalhos de desativação da área onde estava sendo implantada a guerrilha. Foi no meio da tarde do dia 4 de abril, quando eu e Mauro Fernando de Souza estávamos evacuando a casa de um de nossos contatos. Ao cruzar pela cidade de Cascavel, o jipe conduzido pelo Mauro bateu em outro carro nas proximidades da rodoviária. Mauro saiu em busca de um mecânico para orçar o conserto do outro veículo, enquanto eu fiquei próximo ao local do acidente. Em poucos minutos Marins Bello, um conhecido jagunço da Companhia Pinho e Terra, aproximou-se de mim acompanhado por alguns policiais e, aos gritos de “agitador e comunista”, o jagunço e os policiais me  agarraram e me arrastaram até a delegacia de polícia, de onde ainda consegui fugir, mas fui recapturado em seguida e levado para um quartinho onde, durante não sei quanto tempo, fiquei pendurado num pau-de-arara com uma mangueira despejando água em meu rosto coberto por um pano. Devo ter ficado muito tempo e desmaiado várias vezes, pois só acordei quando me jogaram um balde d’água. Meu corpo estava completamente enrijecido, não conseguia estender as pernas, nem os braços. Só fiquei de pé na manhã do dia cinco, quando fui levado para o Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu, e em seguida para o quartel da Polícia do Exército, em Curitiba.

Depois de ter passado por novas torturas no quartel da Polícia do Exército, que na época estava localizado na Praça Rui Barbosa, e no DOPS, na Rua João Negrão, fui levado de volta para Foz do Iguaçu, onde respondi a Inquérito Policial Militar, instaurado pelo general-de-divisão José Carlos de Aragão, comandante da 5ª Região Militar e 5ª Divisão de Infantaria. Por ter tido a sorte de cair sozinho e de meus interrogadores não conhecerem minha história, acabei sendo o único indicado nesse inquérito.

Eu já estava sendo sumariado na Auditoria do Exército em Curitiba, quando companheiros da Dissidência do Estado do Rio de Janeiro foram presos e os militares ligaram minhas atividades com a organização dos novos presos. Em 28 de maio de 1969, agentes do Cenimar vieram me buscar no Paraná e me levaram para o centro de torturas localizado na Ilha das Flores. Dias depois fui conduzido de volta a Curitiba para novas audiências. Depois de muito ir-e-vir, em novembro de 1969 fui levado de forma definitiva para o Rio de Janeiro.

No Rio as torturas continuaram e dessa vez meus algozes foram oficiais da Marinha.

Só me livre dos suplícios quando chegou a hora das audiências no Tribunal Militar da Marinha, que tal como os de outras forças era composto por um juiz togado, quatro militares e um promotor. Esses juízes e promotores eram, como afirmou o jurista Saulo Ramos em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, “inquisidores fanáticos, arbitrários, subservientes, submissos à ditadura, terríveis”. Há casos, por exemplo, de promotores que interrogavam os presos durante as sessões de tortura, como é o caso de José Manes Leitão, que atuou particularmente no Rio de Janeiro e no Ceará.

Naquela manhã eu reencontraria a figura abominável, graxenta e sádica de José Manes Leitão, Promotor Público que prestava serviço à ditadura em várias Auditorias Militares no Rio de Janeiro.

Antes, porém, de ser levado para a auditoria, fiquei trancado numa delegacia de polícia, localizada provavelmente em São Cristóvão, até ser conduzido fechado num camburão para a Auditoria da Marinha, na Praça Mauá. Era a primeira audiência dos presos do MR8.

Terminada a pantomima fomos levados para o Presídio da Marinha, na Ilha das Cobras. Ali estávamos presos quase todos, companheiros de sonho e infortúnio, ainda surpresos pela queda da organização. Prisão e morte nunca fizeram parte de nossos planos. A gente pensava que a luta seria longa, que iria durar muitos anos, como aconteceu em Cuba e na China. De repente fomos presos e um dos nossos foi morto. Reinaldo Silveira Pimenta morreu no dia 27 de junho de 1969, quando o “aparelho” da Rua Bolívar, no bairro de Copacabana, foi invadido por agentes do Cenimar. Segundo testemunha, ao tentar fugir pela janela ele ficou pendurado no parapeito, segurando com as mãos. Os agentes passaram a desferir golpes com a coronha de suas armas sobre seus dedos até ele cair na área interna do prédio.

Durante o período em que ficamos na 5ª prisão – assim era denominada a caverna transformada em cela – fizemos greve de fome e eu fui levado para a solitária depois de ter tido uma discussão com um sargento fuzileiro naval. Aconteceu numa manhã de abril de 1970, dois dias após a morte de Juarez de Brito. Ele deu um tiro no próprio ouvido após ter sido atingido por agentes da repressão. Fiquei sabendo da morte de Juarez na véspera e estava profundamente deprimido quando o fuzileiro sacudiu a rede e me mandou ficar de pé para o “confere”. Ora bolas!, para que ficar de pé se eu estava ali preso, imobilizado? Em certos momentos era impossível manter a serenidade e conviver de forma civilizada com os carcereiros, ainda mais quando diariamente recebíamos notícias de torturas e mortes de nossos companheiros. Ali mesmo, na Ilha das Cobras, fomos testemunhas dos últimos momentos vividos por Eduardo Leite. Bacuri resistiu heroicamente às torturas e estava agonizante.

No dia 29 de agosto de 1970 fomos condenados pelo tribunal militar. Após a leitura das penas, ficamos de pé e cantamos alto e com bom som o Hino da Independência. Nosso canto tomou conta do salão e se espraiou pelos corredores do prédio que até hoje está localizado na Praça Mauá. Terminado o “julgamento” voltamos para nossa cela na Ilha das Cobras e de lá fomos levados no dia seguinte para o Presídio Hélio Gomes, onde passamos por uma revista humilhante e dormimos em colchonetes espalhados pelo chão. Antes de clarear o dia fomos conduzidos de camburão para o Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande. Era quase meio-dia quando descemos no cais de Mangaratiba e dali seguimos no porão da barca que transportava passageiros para a Vila de Abraão.

Da Vila do Abraão até o presídio viajamos num caminhão, que subiu e desceu as serras por uma estradinha de chão batido. Ficamos algemados durante todo o percurso, desde o Presídio Hélio Gomes, localizado no Complexo da Frei Caneca, até o Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande. Assim que chegamos tiraram nossas algemas, fomos revistados e por fim pesados pelo “Dr. Balança”. O médico recebeu esse apelido pelo fato de seu exame consistir em apenas pesar os presos.

Terminada a recepção, fomos levados para a galeria dos presos políticos e ali trancafiados em celas de 2x4cm, fechadas por portas de chapa de ferro que tinham uma fresta por onde os guardas faziam a vigilância dos presos. Em cada um desses cubículos havia uma cama-beliche. No final da galeria, um portão de ferro.

Assim que terminamos de acomodar nossas trouxas fizemos a primeira refeição na ilha-presídio. A partir daquele momento a nossa rotina seria duas vezes por dia entrar e sair escoltados do refeitório de mesas de concreto e granito, onde era proibido conversar e, segundo o que se comentava, o feijão era “batizado” com salitre, que teria o poder de broxar os presos.

Até nove de janeiro de 1971, quando fui banido do território nacional após ser trocado – juntamente com outros 69 companheiros – pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovani Bucher, a Ilha Grande foi minha prisão e meu inferno. Durante o período em que estive enclausurado no presídio da Ilha Grande fui mandado duas vezes seguidas para a temida solitária ou isolamento. A primeira vez foi por ter reclamado de uma rotina estúpida em que os guardas batiam nas grades com um pedaço de ferro para ver se tinha alguma barra serrada. Aquele estrondo noturno, muitas vezes no meio da noite, deixava-me com os nervos à flor da pele. Parecia que a tortura não havia terminado e que novamente eu seria levado para o pau-de-arara.

A “cela-castigo” do Presídio da Ilha Grande era um cubículo pequeno e escuro, sem luz, sem janelas e com paredes eternamente úmidas. Não tinha vaso sanitário nem pia e o chão áspero era coberto por uma camada de imundícies misturadas com graxa, provavelmente restos da comida que chegava numa bandeja pela fresta existente entre o piso e a porta. Meu companheiro no castigo era um preso comum conhecido como Branquinho, que havia participado de um assalto a banco. Naquela época os participantes de assalto a banco, mesmo sendo sem motivação política, eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional e colocados nas mesmas celas que os presos políticos.

Pois bem, certa noite eu acordei sobressaltado com o Branquinho dando uma de louco, ateando fogo no colchonete estofado com capim e esparramando merda para todos os lados. Só assim saí da solitária e voltei para minha cela, graças à loucura do Branquinho; apesar dos sustos e da merda.

A segunda vez que me mandaram para a solitária da Ilha Grande foi devido a uma reclamação que eu fiz ao diretor do presídio. Meus familiares haviam levado livros e eu não os recebi. Pedi uma audiência com o diretor e fui conduzido até a sua sala. Falei dos livros apreendidos e reivindiquei a liberação dos mesmos. O diretor se negou a atender-me e eu então protestei contra as condições da prisão e da ditadura que tinha medo até de livros didáticos. Nem terminei de falar e levei um murro na boca do estômago. Caí e recebi diversos golpes de cassetete. Após o espancamento fui levado para a solitária. Enquanto os guardas me arrastavam pelo corredor, denunciei aos gritos o que havia se passado na sala do diretor e gritei palavras de ordem a favor da liberdade de expressão.

A galeria então entrou em greve de fome em protesto por eu ter sido espancado. Dessa vez meu colega de “cela-castigo” foi Sebastião Medeiros, também da Dissidência Comunista de Niterói. Foi na solitária que ficamos sabendo – por um radinho transistor introduzido clandestinamente – do seqüestro do embaixador da Suíça no Brasil acontecido no dia 7 de dezembro. Só não acompanhamos o desenrolar das negociações porque no meio da noite eu fui mexer no volume do rádio, que estava embaixo do cobertor, e ao invés de abaixar o volume acabei aumentando. Era a hora da ronda e não deu outra: os guardas entraram na cela e me tomaram o único contato que tínhamos com o mundo exterior. Só fiquei sabendo que eu estava na lista e que iria ser trocado pelo embaixador quando os guardas me tiraram do castigo e me levaram para um outro isolamento no segundo andar.

Durante os dias em que fiquei no isolamento da parte de cima tentei recuperar-me dos suplícios daqueles dias, apesar do sono interrompido por pesadelos nos quais eu estava todo lambuzado de merda ou queimado pelos incêndios provocados pelo Branquinho. Além dessas aflições noturnas ainda havia as ameaças feitas pelos guardas penitenciários de que nós, os que estávamos na lista para a troca pelo embaixador, seríamos jogados de helicóptero em alto-mar.

No dia 23 de dezembro um helicóptero baixou no presídio e fui levado até a sala da direção do presídio. Lá me mandaram tirar toda a roupa para ser fotografado em vários ângulos. Antes, porém, os agentes policiais, mediante ameaças, tentaram forçar-me a não aceitar a troca. Disseram que se eu declarasse que queria ser trocado pelo embaixador estaria assinando minha sentença de morte.

Não tive dúvidas, as intimidações e promessas de regalias não adiantaram: assinei uma declaração que fiz de próprio punho e no dia 7 de janeiro de 1971 atravessei a Baía de Angra dos Reis algemado numa barra de ferro de um helicóptero. Por mais incerto que fosse o meu destino naquele momento, a alegria de deixar aquele inferno que era o presídio da Ilha Grande e a perspectiva de liberdade eram maiores do que meu medo e a insegurança em relação ao futuro. Para o exílio eu levava a tristeza de deixar tantos companheiros nos cárceres e as marcas deixadas pelas torturas no corpo e na alma.

 

 

 

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1 comentário

  1. Marcio Barreto diz:

    Prezado Palmar, quanto sofrimento… Espero que você e sua família nunca mais passem por esse episódio horrível e abominável do passado. Tem um pai de um tio meu que ficou preso na Ilha Grande também, seu nome é Uberay Francisco Gonçalves, foi fundador da CGT em Duque de Caxias e também simpatizante do PCB. Você o conheceu? Pode me contar algumas estórias?

    Muita saúde.

    Marcio Barreto
    21 2674-7618

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