São histórias de prisões, de resistências, de dedos-duros, biltres e lambe-botas. Por enquanto vou relatar alguns casos de prisões pitorescas e de resistências
Aluízio Palmar
Um mês após a abertura dos arquivos da Polícia Federal, relativos à época do regime militar, eu fui credenciado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, para pesquisar a papelada existente na Delegacia de Foz do Iguaçu.
Durante dois meses vasculhei os mandados de prisão, informes, radiogramas, ofícios recebidos e expedidos, dossiês, relatórios e outros tipos de documentos produzidos pela burocracia policial.
Reconheço que esta busca é tardia, pois no Brasil, ao contrário do Chile, Argentina e até do Paraguai, os arquivo da repressão estão sendo abertos fora do tempo apropriado. A nossa Lei da Anistia, além de ter permitido a devolução dos direitos civis e políticos aos perseguidos pela ditadura, serviu também ao propósito do esquecimento do passado.
Esta dubiedade reside no fato de que enquanto as vítimas precisam remexer nos arquivos para que histórias sejam reconstruídas, os algozes e seus cúmplices fazem de tudo para que o passado permaneça intacto e possam, assim, terminar em paz os seus dias. Estão normalmente dispostos a pagar a intocabilidade do passado, com o seu próprio esquecimento pela História.
O filme alemão “Cidade sem passado”, coloca muito bem esse mecanismo. Nele as pessoas que foram ou colaboraram com os nazistas desejam que o passado continue intocado, e para isso dificultam o trabalho de uma estudante que recebeu a tarefa de escrever uma redação sobre sua cidade durante a Segunda Guerra. Diante do silêncio de seus conterrâneos, a jovem recorreu ao arquivo público da cidade e descobriu como foi o comportamento das pessoas durante o regime nazista.
Durante minha pesquisa no arquivo da Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu eu me senti como a personagem desse clássico do cinema “cult”.
Ao esmiuçar os quase vinte mil documentos, buscando pistas que indicassem as circunstâncias das mortes dos desaparecidos políticos e a localização dos seus restos mortais, eu tive acesso a um conjunto de documentos que traçam a história do oeste e sudoeste do Paraná e em particular de Foz do Iguaçu nos últimos trinta anos.
São reclamações, investigações e inquéritos sobre as “guerras camponesas” de defesa contra os despejos, executados por jagunços a soldo de latifundiários. Além dos documentos acerca das organizações de esquerda e dos conflitos pela terra, o arquivo da Polícia Federal é farto em documentos sobre questões locais. Estas vão desde as fofocas políticas até uma ou outra articulação do movimento estudantil.
Descobri também um fato acontecido em outubro de 1975 e abafado pela cúpula da Itaipu. Trata-se de uma greve de fome ocorrida no canteiro de obras e que só terminou depois da demissão de 35 operários.
São histórias de prisões, de resistências, de dedos-duros, biltres e lambe-botas. Por enquanto vou relatar alguns casos de prisões pitorescas e de resistências. O resto fica pra depois.
Greve de fome na Itaipu – Durante 21 anos, o regime militar implantado no Brasil em 1964, prendeu, torturou, exilou e assassinou àqueles, que ousaram se opor à ditadura.
O Estado Policial chegou ao seu mais alto grau de terror na década de 70, quando todo o País foi entregue à sanha dos caçadores de bruxas. Era comum haver agentes policiais infiltrados nas escolas, nos ambientes de trabalho e, sobretudo, nos órgãos de comunicação, que, por serem formadores de opinião, sofriam uma vigilância redobrada.
Não faltaram também, como instrumentos de incentivo à delação, os IPMs (Inquéritos Policiais-Militares) e as CGIs (Comissões Gerais de Inquérito). Estas foram instaladas em todos os órgãos de governo, inquirindo um a um os servidores e forçando-os a comprometer os demais.
Naquela época qualquer tipo de protesto era considerado um ato subversivo e ainda mais dentro do resguardado Canteiro de Obras da futura maior hidrelétrica do mundo.
A Coordenação de Informações e Segurança da empresa binacional, comandada por militares reformados, possuía uma radiografia completa de cada funcionário e trabalhava em conjunto com o Centro de Informações do Exército, especificamente com a 2ª Seção (Serviço Secreto) do 1º Batalhão de Fronteira, hoje 34º BIMTZ; com o Serviço de Informações das polícias Federal e Militar; com o Centro de Informações da Marinha – Cenimar; com o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica – Cisa e Serviço Nacional de Informações- SNI.
As fichas preenchidas pelos candidatos a emprego eram enviadas pela Itaipu para análise de todos esses órgãos que compunham o sistema de repressão da ditadura. No decorrer do meu trabalho no arquivo da PF me deparei com diversos casos de pessoas que tiveram seus pedidos de emprego negados por terem tido alguma atividade no movimento sindical ou estudantil.
Apesar de todas estes cuidados e do clima de terror implantado pelos beleguins do general Costa Cavalcanti, no dia 28 de outubro de 1975, um grupo de operários iniciou uma greve de fome no Canteiro de Obras de Itaipu, em protesto “contra a péssima alimentação” que era servida. O movimento foi reprimido e 35 operários foram demitidos para “servir como exemplo e impedir novas demonstrações de rebeldia”.
A greve de fome durou três dias e começou entre os operários da subempreiteira Vila Rica, que por sua vez prestava serviços a empreiteira Adolpho Lindemberg. Foi um movimento espontâneo e pegou todo a direção de surpresa. Roberto Helbling, um militar reformado, escolhido a dedo para dirigir o setor de segurança da Obra, ficou sem ação e pediu ajuda ao SNI.
De Brasília veio a ordem de chamar o general Adalberto Massa, delegado Regional do Trabalho. A presidência da República tinha receio que os grevistas fossem reprimidos no cacete e a imprensa tomasse conhecimento do que estava acontecendo “entre os muros” da construção da grande usina.
O general Massa baixou em Foz no segundo dia de greve e foi do aeroporto diretamente para o Hotel Bourbon, onde já se encontravam reunidos para avaliar a situação o general Costa Cavalcanti, Helbling e Junot.
Nessa reunião, o general Costa Cavalcanti sugeriu que a greve fosse reprimida de forma exemplar “para acabar definitivamente com os focos comunistas” dentro de “sua obra”. Momentos antes, Helbling havia informado que recebera radiogramas dos órgãos de informações comunicando que nenhum dos grevistas era fichado por atividade política ou sindical.
Por fim foi acolhida a proposta do general Massa, que consistia na demissão sumária e exemplar de todos os líderes do movimento a começar por Miguel Alcanis Gimenez, que havia se apresentado como porta-voz dos grevistas. O principal argumento do Delegado Regional do Trabalho foi de que uma repressão física, com prisões dos grevistas, poderia vazar para a imprensa internacional e desabonar a imagem que a empresa binacional estava construindo no exterior.
No dia trinta de outubro de 1975, três após o início da greve de fome, 35 operários da construtora Vila Rica foram sumariamente demitidos e enviados à suas cidades de origem e greve virou tabu dentro da Obra.
A prisão do topógrafo – Paulo José Dias era topógrafo e trabalhava para a Planta Engenharia S/A, consorciada da Matrix Engenharia S/A, empresa designada para fazer o cadastro de implantação do Canteiro de Obras da barragem de Itaipu.
Em 12 de dezembro de 1973, ele, esposa e filha mudaram-se de Muriaé, Minas Gerais, para Foz do Iguaçu. Como não conseguiram casa para alugar foram morar no Hotel da Porota, que era localizado na Rua Rio Branco.
Dois meses após terem chegado a Foz, a esposa resolveu voltar para Muriaé. Ela estava entrando no nono mês de gravidez e achou melhor ter a criança ao lado de seus pais, em sua cidade natal.
No dia 14 de fevereiro, logo depois de meio-dia, acompanhada pela filha, ela pegou uma Kombi e foi para o aeroporto.
Chovia muito naquele começo de tarde, o que tornava impraticável o trabalho de topografia. E já que estava parado, o topógrafo pediu à chefia autorização para ir ao aeroporto se despedir de sua filha e da esposa. Disse pro chefe que quando saiu, de madrugada, como todos os dias, a menina ainda estava dormindo.
Apesar de seus argumentos e da chuva, que não parava de cair, seu pedido foi negado. Inconformado com a intolerância da chefia ele passou o resto da tarde no alojamento com os colegas, pois o tempo chuvoso não era propício ao trabalho de campo.
No final do expediente, ainda revoltado, Paulo José foi tomar uns tragos no Bar Garfo de Ouro. Lá pelas tantas, deitou falação contra o militarismo e disse que era um absurdo em pleno século XX a humanidade resolver seus problemas na base da guerra. Um soldado do Batalhão não gostou e disse para o topógrafo que ele estava ofendendo o Exército Brasileiro. O militar tentou ainda prendê-lo, mas ele deu um safanão e conseguiu se safar.
Levantou de ressaca no dia seguinte e foi até o bar mais próximo para rebater o porre da véspera. Bebeu uma dose de rum e retornou ao hotel para tomar um banho. Ao chegar, um policial, que já o esperava, levou-o para a delegacia de polícia onde foi rigorosamente interrogado. Queriam que ele confessasse que era comunista e membro de organização subversiva infiltrada na obra de Itaipu.
O topógrafo contou sua história. Falou da mulher grávida, da filha e da frustração por não ter ido ao aeroporto para se despedir delas. Da Civil foi conduzido para a Delegacia da Polícia Federal, onde dormiu, depois de nova qualificação e interrogatório. No dia seguinte foi levado para o Batalhão onde ficou três semanas no xadrez. Durante este período novos interrogatórios e ameaças de tortura.
Naquela época ainda havia no Batalhão um cubículo com diversos aparelhos de tortura. Os últimos presos supliciados na “sala de terror” foram os professores Luíz e Izabel Fávero. Ela estava grávida e abortou depois de uma sessão de choques elétricos.
Os militares estavam convencidos que Paulo José era um perigoso subversivo, membro de alguma célula comunista existente no Canteiro de Obras. Para tanto eles se escoravam em informações fornecidas pelo Centro de Informações do Exército- CIE, que davam conta que um colega do topógrafo na Usiminas havia sido preso como subversivo em 1964.
Outro dado também considerado importante pelos militares, era de que uma tia de Paulo José era casada com o tio do padre Geraldo da Cruz, preso em 1967 por ser membro de uma congregação religiosa “suspeita de subversão”.
Apesar de não terem nenhum motivo para manter o topógrafo preso, os militares o mantiveram no xadrez durante 22 dias. Por ultimo foi fichado como subversivo e demitido da Planta Engenharia S.A.
O cerco aos jornais e jornalistas
1. Jornal fechado e diretor mandado embora de Foz
Em 18 de setembro de 1974 surgiu em Foz do Iguaçu um jornal tamanho standard e impresso no sistema offset. Dirigido por Waldomiro de Deus Pereira, que tinha como sócios Norival de Souza e Mário Teixeira, o Jornal Binacional, levava estampado embaixo do título a frase: “Veículo da região de Itaipu para o Brasil e Paraguai”. A redação do novo órgão de imprensa da cidade era na Rua Edmundo de Barros e a impressão da primeira e única edição foi na Editora Lítero Técnica, localizada na Rua Alferes Poli, 299, em Curitiba.
Nesta mesma época circulava na cidade o Mini Informativo, de Ignez Sanches de Cristo e a revista Painel, de José Vicente Tezza, que até hoje resiste bravamente.
A edição do Jornal Binacional, que circulou em 18 de setembro de 1974, dedicou seis de suas dez páginas a situação dos colonos que tiveram suas terras desapropriadas na localidade de Santo Alberto, situada nas proximidades do Parque Nacional do Iguaçu.
“Expropriados pedem sindicância federal”, foi a manchete de capa acompanhada de um texto em que a direção do jornal fez questão de dizer que a pretensão da matéria “não era de contestar a ação do governo em desapropriar a área da antiga Gleba Silva Jardim, nem tampouco criticar ou fazer restrições, já que a confiança no Governo da Revolução é irrestrita”.
Depois dessa alisada no governo dos generais, o jornal criticou a forma como estava sendo feita a desapropriação dos pequenos proprietários pelo Incra. Esses colonos, quase todos pioneiros de Foz do Iguaçu, estavam sendo tirados de suas propriedades e transferidos para o Projeto Integrado de Colonização, PIC-OCOI, em São Miguel do Iguaçu. Enquanto as benfeitorias eram pagas por um terço do seu valor e as terras com títulos da dívida pública, as novas propriedades no PIC-OCOI eram vendidas aos colonos com financiamento a juro de mercado.
As seis páginas do Binacional dedicadas ao caso dos despejados de Santo Alberto, mostram, por meio de depoimentos e fotografias, a situação de miséria das famílias dos agricultores e o clima de medo que dominava a região.
Não deu outra, a matéria não agradou os militares e Waldomiro foi intimado a comparecer ao Batalhão. Lá, ele foi severamente interrogado. Queriam saber se o movimento de resistência dos colonos era orientado por organizações subversivas.
Depois de ficharem o jornalista, mandaram que ele juntasse seus pertences e fosse embora da cidade. Os órgãos de informações continuaram controlando os passos do jornalista e a última anotação sobre ele no arquivo da PF data de 24 de fevereiro de 1975 e diz que Waldomiro estava trabalhando naquela ocasião na Tribuna de Cianorte.
2. Paulo Martins aborta manifesto democrático
Numa tentativa de conter uma previsível vitória oposicionista nas eleições de 1978, o general Ernesto Geisel apertou o cerco e em 1977, após fechar o Congresso por duas semanas, introduziu uma série de medidas conhecidas como o “pacote de abril”, alterando as regras eleitorais com intuito de beneficiar o partido do governo (Arena).
Inconformado com estas medidas, Beliamino Júlio Miotto, diretor da Rádio Colméia, de Cascavel, mandou divulgar uma nota escrita pelo jornalista Leopoldo Sefrin Filho, que por meio de metáforas repudiava as novas medidas ditadas pelo ditador.
Ao tomar conhecimento que o texto seria lido pelos locutores da Colméia durante a programação, o então gerente da emissora Paulo Martins, ativo informante dos órgãos de repressão, foi até o estúdio e recolheu o documento, levando-o para o chefe da 2ª Seção, do Grupamento do Exército em Cascavel.
Este fato está registrado entre os milhares de documentos que fazem parte do acervo do arquivo da Polícia Federal de Foz do Iguaçu. Anexado a papelada que trata do caso está o texto que teve sua leitura abortada: “Acaba de falecer esta manhã a respeitável senhora democracia, vítima de mal ainda desconhecido, após recesso parlamentar.
Segundo fontes oficiais, a senhora democracia foi acometida possivelmente de um vírus denominado fechamento de questão em torno do caso.
A defunta está sendo velada no lado de fora do salão do Congresso Nacional, após o Presidente da República ter levado um “pacote” de velas ao santuário judicial esta manhã.”
3. Texto de Rui Pires foi parar nas mãos de delegado
Outro caso envolvendo jornalistas, aconteceu com Rui Pires, que, em 1975, trabalhava na Rádio Matelândia. Num certo dia de outubro, indignado com a situação do País, ele escreveu uma nota que lhe rendeu muitos aborrecimentos. O texto escrito numa máquina Remington da redação era um protesto contra a supressão de eleições nas capitais e municípios localizados nas áreas consideradas de segurança nacional. “O atual regime se diz democrático. Por que então a supressão de autonomia das capitais e dos municípios da fronteira, quando o artigo 1º da Constituição afirma que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”, escreveu Pires.
Pois bem, o jornalista esqueceu sobre sua mesa a folha de papel datilografada e ela foi parar nas mãos do Delegado de Polícia, 2º sargento PM, Benedito Camargo, que fez questão de a entregar pessoalmente ao major responsável pela 2ª Seção do Batalhão.
Rui Pires foi intimado para depor, demitido da Rádio Matelândia e durante anos seus passos foram controlados pelos agentes dos serviços de informações. Mais tarde ele foi para Marechal Cândido Rondon, onde se destacou trabalhando na imprensa local e ocupando cargos relevantes na prefeitura local.
4. Baixo meretrício e comunismo internacional
Os arquivos da repressão estão repletos de casos semelhantes aos narrados acima. Vale ainda registrar uma reportagem publicada pelo jornal Hoje Rondon , que era dirigido pelo jornalista Sefrin Filho, e que movimentou a 2ª Seção do 1º Batalhão de Fronteira e deu origem a extensos relatórios.
A matéria que deixou os militares arrepiados foi sobre as condições de vida das mulheres que viviam na Zona de Baixo Meretrício de Rondon. Algumas mulheres foram entrevistadas e contaram para a reportagem saíram do campo e os caminhos que percorreram até a chegarem na prostituição.
Apesar da matéria registrar um problema social, real e contemporâneo, os militares redigiram o Encaminhamento nº 9S2-78, de 26 de abril de 1978. De acordo com o documento oficial que está juntado no arquivo da PF, “A reportagem do Hoje Rondon – Este jornal foi pra Zona de Meretrício – causou uma reação de revolta e muitas críticas por parte da população do município, tendo em vista o seu teor desagregador da família e em acordo com o esquema subversivo elaborado e preconizado pelo Movimento Comunista Internacional.”
Outro veículo de imprensa, a revista Painel, decana da imprensa iguaçuense, também foi investigada pelos órgãos de repressão. Os olhos e ouvidos dos arapongas estiveram voltados para a revista de José Vicente Tezza por conta dos incisivos e corajosos artigos do advogado Antônio Vanderli Moreira, então presidente do Diretório Municipal do MDB.
Devido as suas vigorosas críticas ao regime discricionário e também pela sua militância social, como foi a heróica defesa dos colonos desapropriados de Santo Alberto, Antônio possui polpudos prontuários nos órgãos de repressão política de Foz do Iguaçu.
“Edição do Jornal Binacional, que circulou em 18 de setembro de 1974, dedicou seis de suas dez páginas a situação dos colonos que tiveram suas terras desapropriadas na localidade de Santo Alberto”
“Vale ainda registrar uma reportagem publicada pelo jornal Hoje Rondon , que era dirigido pelo jornalista Sefrin Filho, e que movimentou a 2ª Seção do 1º Batalhão de Fronteira”