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Meu amigo Wânio José de Mattos

Sujeito bom era o Wânio. Um baita boa praça, companheiro dos melhores, combatente aplicado em todas as matérias da militância e filho exemplar. Foi no Chile, embalados pelo sonho da Unidade Popular, onde tivemos uma convivência,digamos, mais estreita. Quantas conversas boas, regadas pelo cafezinho que só o Wânio sabia fazer. Ele colocava aquela quantidade certa de Nescafé na chícara, despejava uma gotas d’água e em seguida batia com uma colherzinha de chá. Batia, batia, batia. Com muita paciência ele batia até a mistura de água e café ficar espumante. Em seguida completava com  água fervente. Rapaz, que café. E assim ele fazia para todos que estavam na roda. Ia servindo um por um.

Quando sua “mamita” chegou no Chile foi uma festa. Wânio saia com ela pra passear por todos os lugares aprazíveis da Santiago de então. E dá-lhe Cerro São Cristóvão, Cerro Santa Lucia, museus, praças e parques. Pelas tardes a gente ia “tomar o onze” numa “Casa de Chá” localizada na Praza de Armas . Até hoje não sei porque leva esse nome, mas “tomar o onze” era o mesmo que o “chá da cinco”. E lá íamos nós, eu, minha mulher Eunice, mais o Wânio e sua mãe. Ele era um verdadeiro gentleman. Puxava as cadeiras para as senhoras e depois que o garçom se retirava era ele que servia a segunda dose de chá.

Quando minha cunhada Arlete esteve  no Chile nos visitando ele fez as vezes de anfitrião. Numa tarde saimos pra passear e andar a cavalo na “Cidade Faroeste”. Nós desengonçados, brigando com o cavalo – os animais não obedeciam nosso comando -, e ele senhor cavalheiro, emplumado como um lorde inglês na caça às raposas. A gente morria de vergonha do exímio cavaleiro. Tenho saudades de tudo isso, de você meu amigo, companheiro e camarada Capitão Wânio de Mattos.               

Aluízio Palmar

Wânio José de Mattos  era acusado pelos órgãos de segurança do regime militar de apoiar as atividades da VPR, integrando a sua área de Inteligência. Preso por agentes da OBAN em abril de 1970, foi expulso da PM e banido para o Chile em 1971, junto com outros 69 presos políticos, em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Naquele país, trabalhou como professor universitário. Com o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, em 11/09/1973, no Chile, Wânio e a mulher foram presos e levados para o Estádio Nacional, em Santiago, conforme testemunho da exilada Marijane Vieira Lisbôa. Morreu em 16 de outubro daquele ano, sem tratamento médico, em conseqüência de ferimentos causados durante a prisão. A certidão de óbito emitida pelo Hospital de Campanha do Estádio Nacional, sem assinaturas de médicos legistas, deu como causa da morte “peritonite aguda”. A família só teve conhecimento das circunstâncias da morte de Wânio com a divulgação do Relatório Rettig, em 1991, pela Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, que inventariou as violações de Direitos Humanos durante a ditadura de Pinochet. Com base nesse reconhecimento oficial assumido pelo governo do Chile, os familiares receberam indenização definida por lei daquele país. O processo formado junto à CEMDP foi indeferido porque prevaleceu a interpretação de que não restou comprovada, com as informações disponíveis no momento de julgamento do caso, que o Estado brasileiro tivesse responsabilidade pela morte. O reexame do caso foi aventado pelo jornalista Lucas Figueiredo, em 15/04/2007, quando publicou simultaneamente no Correio Braziliense e no Estado de Minas matérias divulgando o conteúdo do chamadO Livro negro do terrorismo no Brasil, produzido pelo Exército entre 1986 e 1988. Escreve o jornalista: “Outro trecho revelador do livro refere-se a Wânio José de Mattos, integrante da VPR que desapareceu no Chile em setembro de 1973, após o golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende. Só em 1992, quando os arquivos chilenos foram abertos, a família foi informada pelas autoridades daquele país que, por falta de atendimento médico, Wânio morrera de peritonite aguda no Estádio Nacional, onde se encontrava preso. Contudo, pelo menos quatro anos antes da abertura dos arquivos chilenos, o Exército brasileiro já tinha conhecimento da versão, como mostra a página 788 do livro secreto. O trecho em que se lê ‘Wânio José de Mattos morreu no Chile, em 1973, com peritonite’ é mais uma prova de que, a partir do início da década de 1970, as ditaduras latino-americanas atuavam em estreita sintonia na guerra suja que travavam sobre seus opositores, parceria que ficou conhecida com o nome de Operação Condor”. Por último, em 22/07/2007 o jornalista Cláudio Dantas Sequeira publicou no Correio Braziliense matéria sobre documentos secretos do Itamarati durante o período ditatorial, reforçando a possibilidade de que autoridades brasileiras tenham contribuído para a prisão e morte de Wânio, visto que fica comprovada a existência de vigilância permanente sobre todos os exilados brasileiros, especialmente no Chile. A reportagem menciona que no Informe 656, de 31/12/1973, o Itamaraty é formalmente comunicado da morte de Wânio em 16/10/1973, nove anos antes do reconhecimento oficial pelo governo chileno e 20 anos antes de os ministérios brasileiros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica terem informado oficialmente ao ministro da Justiça Maurício Corrêa que não sabiam daquela morte.

Mais Informações:

VÂNIO JOSÉ DE MATOS Militante da VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA (VPR). Nasceu em 27 de abril de 1926, em Piratuba, São Paulo, filho de José Antônio de Mattos e Luiza Santos Mattos. Era capitão da Polícia Militar de São Paulo. Desaparecido desde 1973, aos 47 anos de idade. Preso pela Operação Bandeirantes, em fins de 1970, foi expulso da Polícia e banido para o Chile, em 1971, quando do seqüestro do embaixador suíço no Brasil, juntamente com outros 69 presos políticos. Segundo denúncia da ex-presa política Marijane Lisboa, Vânio foi preso e, com sua mulher, levado para o Estádio Nacional, em Santiago, quando do golpe que derrubou Salvador Allende, em 1973, onde morreu sem tratamento médico, em outubro daquele ano. Somente após o Relatório Rettig (1992), seus familiares tiveram acesso às informações sobre as circunstâncias de sua morte e o Estado Chileno assumiu a reparação financeira. Sua certidão de óbito, feita em Santiago (Chile), no Hospital de Capaña do Estádio Nacional dá sua morte em 16 de outubro de 1973, tendo como causa mortis “peritonite aguda”. Não há assinaturas de médicos legistas. Lá, como aqui, forjavam-se causas mortis.

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14 comentários

  1. wellington moreira diniz diz:

    Parabens pelo belo trabalho. Alem do mais, gostaria que ,se possível, fosse acrescentado a este doc. sobre o companheiro Vanio a atitude que teve quando da saida do brasil e o comportamento no Parque Cousinho, onde estivemos e as cabeças não andavam muito bem. Vanio trazia sempre uma palavra de vida, de animo de futuro. Foi amigo e companheiro de muitos do grupo dos setenta.
    Vanio é mais um dos herois anonimos que construiram com o seu amor e seu coração grande fe na vida e naliberdade.

    1. Eta Wellington, quanto tempo meu camarada. Por favor escreva essas linhas sobre o Wânio e eu acrescento. Fica aqui documentado esse seu depoimento.
      Um abraço e a gente se vê.
      para mandar o texto use meu email
      ferreirapalmar@uol.com.br

    2. Maria Aparecida de Mattos diz:

      Sou sobrinha de tio Wânio e com muita emoção li o artigo. Ele era irmão de meu pai Ivan (já falecido) e irmão de tia Ieda. Lembro muito quando ainda criança, ele nos levava no quartel para vermos os cavalos. Até hoje canto as músicas que ele costumava cantar para nós. Eu sou a segunda sobrinha e tem mais 8 (seis irmãos meus e 2 outros fihos de sua irmã). Temos muitas fotos dele. Acho que ele era o filho preferido de minha vó Luiza. Era muito alegre e bondoso. Ate hoje lembramos dele. Sua filha Roberta mantém contato conosco, sobretudo com minha irmã mais velha. Ela mora no Paraná (não lembro a cidade), alguns em Florianópolis (como eu) e 2 no Rio. Saudades sempre. Um abraço, Maria Aparecida de Mattos

      1. João Roberto Laque diz:

        Maria Aparecida,
        Sou jornalista e estou precisando entrar em contato com a Roberta de Mattos para uma homenagem que a Comissão da Verdade de São Paulo quer fazer a seu tio Wânio.
        Se você puder entrar em contato comigo por e-mail fico grato.
        laque@ibest.com.br

    3. Querido Wellington, deseo escribirte. Estoy haciendo un libro del cine chileno y tu aporte es importante.
      strabuccop@gmail.com

      1. wellington diz:
    4. Querido Wellington quiero escribirte y saber de ti. Un abrazo strabuccop@gmail.com

  2. Rubens Fernando Romaniolo diz:

    Procurava informaçoes do meu Tio Wanio, algo que não se comentava na minha familia, mas indiferente do passado, e o meu tio. a unica foto que vi ele foi no casamento de meu pai.

  3. Celso Pinho diz:

    Ao que me parece, o Capitão Wânio “caiu” porque um importante membro do Comando Nacional da VPR também havia caido, dois ou três dias antes, na Guanabara e, em seu interrogatório, deu o “ponto” que ela teria com outro integrante no CN na rua Apeninos, em São Paulo. No “aparelho” deste membro do CN, localizado na Rua Abílio Soares, os agentes da OBAN encontraram uma carta que “Waldir” (Wânio) havia enviado para Lamarca, que naquela altura encontrava-se na região de Registro. Este segundo membro do CN reconheceu fotograficamente “Waldir” como sendo o Capitão Wânio.

  4. Boa tarde,

    Me chamo Carolina Oliveira de Mattos e sou neta do Ivan de Mattos Filho, irmão do Tio Vânio. Meu pai é sobrinho dele, José Antônio de Mattos.

    Desde de pequena ouço histórias cheias de saudades do Tio Vânio, porém nunca soube eu tive acesso a relatos mais profundos ou mesmo fotos do mesmo. Sempre fui muito ligada ao meu avô, já falecido, porém nunca conversamos sobre o assunto. Nunca o questionei com medo de que isso pudesse machuca-lo muito.

    Caso tenha mais relatos ou mesmo lembranças, gostaria de mostrar ao meu pai e familiares.

    Desde já agradeço.

    Atenciosamente,

    1. Vânio era sobretudo um cavalheiro. Eu o conheci no Voo da Liberdade que nos conduziu ao Chile em janeiro de 1971. Convivi com ela no Hogar Pedro Aguirre Cerda e mais tarde em uma casa no Paradero Deciocho, tb em Santiago. Éramos amigos. Ele preparando o cafezinho de uma forma muito singular. Passava minutos batendo o nescafé com um pouquinho de água. Quando a mistura ficava cremosa ele servia. Que paciência! Qta gentileza. E ver o Vânio montando! Parecia um lord inglês.

  5. Luis Fernando Assunção diz:

    Ele nasceu em Piratuba, Santa Catarina. Tive acesso à sua certidão de nascimento quando escrevi o livro Assassinados pela Ditadura – mortos e desaparecidos de SC durante a ditadura, editora Insular. É um erro recorrente dizer que ele nasceu em São Paulo. Nos próprios arquivos do Ditadura Nunca Mais consta isso. Tive acesso à certidão dele em Florianópolis, onde ele também morou antes de seguir para São Paulo.

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