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O Mapa da morte. Cárceres clandestinos da ditadura militar

Em uma quadra residencial do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, um casarão em estilo neoclássico recebeu nos últimos 52 anos professores da rede estadual, idosos de uma casa de repouso e até um laboratório de análises clínicas. Mas a maioria dessas pessoas não devia ter ideia do que ocorreu no local entre março de 1964 e agosto de 1966. Antes do uso comercial, aquele imóvel do número 600 da rua Santo Antonio abrigou o primeiro centro clandestino de tortura usado pela repressão após o golpe que instalou a ditadura militar (1964-1985) no Brasil.

A violência praticada por agentes do Estado no casarão conhecido como Dopinha – uma referência ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) – deu início a uma década de torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores do regime em aparatos clandestinos da ditadura. Propriedades privadas, alugadas ou emprestadas por simpatizantes das Forças Armadas, e até mesmo dependências de órgãos públicos com desvio de atribuição, formaram entre 1964 e 1975, do Rio Grande do Sul ao Pará, um mapa da morte, com endereços que permanecem nas sombras até hoje.

Alguns meses antes de abrigar uma delegacia da Secretaria Estadual de Educação, o casarão da rua Santo Antonio fazia parte dessa estrutura paralela. Só saiu da clandestinidade em 24 de agosto de 1966, quando o local foi ligado ao corpo do sargento do Exército Manuel Raymundo Soares, encontrado boiando, com as mãos amarradas às costas, nas águas do rio Guaíba. Foi um dos primeiros casos de tortura e morte por parte dos órgãos de repressão sobre o qual se teve notícia na época.

Soares foi preso no dia 11 de março de 1966, delatado por um agente infiltrado. O sargento levava panfletos contra a ditadura. A ideia era distribuí-los dali a alguns dias, durante a visita a Porto Alegre do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente militar.

A passagem de Soares pelo casarão nunca foi comprovada, mas a morte dele chamou bastante atenção – foi criada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa e um inquérito independente, conduzido pelo promotor Paulo Cláudio Tovo.

As investigações apontaram provas e evidências de tortura e homicídio. Foi revelada a existência de um sistema quase autônomo, dentro e à sombra do Estado, para reprimir qualquer oposição ao regime.

Desativado em 1966 devido à repercussão do caso Soares – que ficou conhecido como Caso das Mãos Amarradas -, o Dopinha marca também a adoção pelos militares brasileiros da “guerra contrarrevolucionária”, doutrina francesa criada durante a Guerra da Argélia. “Esse procedimento de locais clandestinos é uma escola francesa de tortura e assassinato, do [general francês] Paul Aussaresses. É um padrão científico de repressão”, diz Ivan Seixas, ex-preso político que coordenou o projeto Memória e Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República durante o governo Dilma Rousseff.

Aussaresses, a quem Seixas se refere, morreu em 2013 aos 95 anos. Foi veterano de duas guerras coloniais – Indochina, hoje Vietnã, e Argélia. No país africano, adquiriu a convicção que a tortura era uma arma de combate eficaz, um recurso legítimo contra um “inimigo interno” que se misturava à população civil. Ministrou treinamentos nos Estados Unidos, em 1961, e depois no Brasil, onde foi adido militar da França de 1973 a 1975. Pela sua cartilha, militares de todo o continente aprenderam técnicas de interrogatório intensivo e execução sumária de prisioneiros, uso do soro da verdade, práticas dos esquadrões da morte, desaparecimentos forçados e sumiço de corpos jogados de aviões em pleno voo.

Muito antes da morte do sargento Soares, o casarão da rua Santo Antonio já recebia presos ilegalmente. Um deles foi Carlos Heitor Azevedo, um jovem de esquerda que não militava em organizações políticas, mas ainda em 1964 ousou distribuir panfletos em frente aos quartéis de Porto Alegre. Queria convocar um levante de soldados contra o golpe militar. No dia seguinte, a repressão levou-o de casa direto para o Dops, no Palácio da Polícia. De lá, foi levado para o Dopinha.

Nos dois dias em que permaneceu no Dopinha, Azevedo apanhou e recebeu choques elétricos. “Lá dentro, ouvi gritos. Música com urros e a parede cheia de sangue”, afirma. Hoje, aos 85, acredita que escapou de torturas piores devido ao seu parentesco com o então coronel Luiz Azevedo Gusmão, que atuava no Dops. Além disso, o seu pai, Pedro Camargo de Azevedo,  era deputado e apoiava o regime. Ao saber que o filho estava preso, pediu ajuda a outro deputado, Delmar Ribeiro, que era delegado. Os dois foram buscá-lo de carro no casarão da rua Santo Antonio.

O registro do imóvel, atualizado a partir de 1980 pelo Cartório da 2ª Zona da capital gaúcha, informa que o casarão pertencia a três irmãos da família Barcelos Panichi com base na certidão original, datada de dezembro de 1963. Hoje, pertence a dois irmãos e um primo, com idades entre 40 e 50 anos, todos descendentes diretos dos três irmãos Barcelos Panichi. Segundo a advogada Maria Isabel Beck, que representa os proprietários, o imóvel foi destinado à locação e houve desvio de finalidade à época. “Seus avós não sabiam [que era usado por agentes da repressão]”, afirma.

Após a desativação do Dopinha, o regime militar baixou seis Atos Institucionais em menos de seis meses. Entre outubro de 1966 e fevereiro de 1967, elimina eleições diretas, cassa mandatos, suspende partidos e direitos políticos, transfere para a Justiça Militar os julgamentos de civis, impõe uma nova Constituição e amplia os poderes do presidente. Com a posse do general Costa e Silva, as premissas da “guerra contrarrevolucionária” ganham contornos legais com o decreto que estabelecia a Doutrina de Segurança Nacional. Consolidada a ditadura, ao longo de 1967 a resistência se estende do movimento estudantil para sindicatos de trabalhadores e segmentos da classe média.

Entre março e abril de 1968, duas organizações de esquerda dão início à luta armada. A VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), liderada pelo guerrilheiro Carlos Lamarca, e a ALN (Ação Libertadora Nacional), sob o comando de Carlos Marighella, inauguram uma sequência de cerca de 50 assaltos a bancos que se estende até 1970. Inicialmente despreparada para enfrentar essas ações, a repressão ataca o movimento estudantil e prende suas lideranças. Em seguida, coloca todas as liberdades civis sob o poder da caneta do presidente militar, fecha o Congresso e elimina a concessão de habeas corpus para presos políticos.

Para articular as forças policiais, o regime estabelece uma nova estrutura repressiva. Surge em São Paulo, em julho de 1969, a Oban (Operação Bandeirante). Financiada por empresários e com ampla liberdade de ação, essa organização estava além de qualquer limite jurídico ou burocrático e possuía uma estrutura flexível, composta por militares do Exército e policiais civis e militares. A partir daí, as denúncias de tortura disparam. Um ano depois, esse modelo se espalha para o restante do país na forma dos temidos DOI-Codis (Destacamento de Operações e Informações ligado ao Centro de Operações de Defesa Interna), inspirado pela Doutrina de Segurança Nacional. Com o delegado Sérgio Paranhos Fleury no comando do Dops paulista e a chegada do major Carlos Alberto Brilhante Ustra para liderar o DOI-Codi em São Paulo, as mortes sob tortura deixam de ser “acidente de trabalho”. A partir de 1970, a repressão adota a fachada de atropelamentos e tiroteios para a eliminação sistemática de opositores.

Além dos assaltos a bancos e carros-fortes, as organizações de esquerda surpreendem o regime com o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em setembro de 1969, pela ALN e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). A repressão reage com uma emboscada que resulta na morte do guerrilheiro Carlos Marighella, líder da ALN, em novembro de 69. A troca do diplomata por 15 presos políticos é a senha para uma sequência de ações armadas envolvendo estrangeiros. Nos primeiros seis meses de 1970, a VAR-Palmares sequestra o cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi, e a ALN rapta o embaixador alemão no Rio, Ehrenfried Von Holleben. Encurralado, o regime cede e liberta 45 presos políticos nas duas ações em troca dos estrangeiros. Na sequência, inicia uma caçada aos militantes da ALN.

 

Na madrugada de 22 de agosto de 70, o paulista Ottoni Fernandes Júnior foi preso e levado da Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, para um cárcere clandestino. Quando o carro parou em um pátio de cascalho, o militante do grupo tático armado da ALN foi arrastado por uma escada com as mãos e pés amarrados. Uma descida de uns 40 degraus de pedra. Havia cheiro de mar. Quando o próprio Sérgio Paranhos Fleury removeu seu capuz, ele viu que estava em uma casa desabitada.

Era a Casa de São Conrado, o segundo aparelho clandestino usado pela repressão. Localizada na zona sul do Rio, ficava a cerca de 20 km do local onde Ottoni foi preso. Foi o único centro clandestino de tortura comandado pelo Cenimar, a agência de inteligência da Marinha. O imóvel nunca foi encontrado, mas o testemunho da vítima permite delimitar a área do Alto de São Conrado como o cárcere onde foi torturado.

 

Ottoni foi preso dois dias após ação armada da ALN no BNMG (Banco Nacional de Minas Gerais), assalto de grande repercussão que resultou na morte do agente Wagner Lúcio Vitorino Silva. Além dele e do militante Eduardo Collen Leite, codinome Bacuri, “caíram” também Reinaldo Guarany Simões, Francisco Roberval Mendes e Benjamim Torres de Oliveira – este consta na lista de desaparecidos políticos da ditadura.

Ao ser retirado do local, depois de três dias de tortura, Ottoni conseguiu a primeira pista. “Quando eu saí, apesar de estar sem óculos e ter sete graus de miopia, subi a escada, olhei para fora e vi o Hotel Nacional. O Hotel Nacional era absolutamente identificável, era uma torre cilíndrica de frente para o mar. Eu estava, portanto, na encosta oposta à torre, que é uma encosta em São Conrado”, afirma. Colocado num camburão junto com Bacuri, o militante foi conduzido ao 1º Distrito Naval, na Praça Mauá. Bacuri foi levado ao Hospital da Ilha das Cobras. Quase quatro meses depois, em 9 de dezembro, Bacuri estava morto, assassinado por agentes do Estado. Em junho, o guerrilheiro havia liderado o sequestro do embaixador alemão.

 

Ottoni só saiu da prisão em 1976 e tentou, sem sucesso, identificar a casa em São Conrado. Mas o bairro já não era o mesmo. O túnel Zuzu Angel, à época batizado de Dois Irmãos, havia sido inaugurado em 1971, mudando a rota de acesso àquela área. Apesar da urbanização, um mapa oficial da região em 1975 obtido pela reportagem mostra que a densidade demográfica à época era baixa, reduzindo as opções para localização da casa. Após a Rocinha, as poucas casas do bairro se concentravam no Alto de São Conrado. Simões, militante da ALN que participou de ações armadas com Ottoni, lembra que aquela área era tão pouco habitada que a região do Joá e da Barra da Tijuca, próxima de São Conrado, era usada por militantes de esquerda para treinamento de tiro e granada.

Aos 70, Simões vive numa casa em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Olhando em retrospecto, ele acredita que a repressão apertou o cerco sobre os militantes porque queria chegar a Joaquim Câmara Ferreira, também conhecido como Comandante Toledo, sucessor de Carlos Marighella no comando da ALN. “No dia em que fui preso, estava indo encontrá-lo em um ponto. Foi por 15 minutos que não o pegaram”, relata. Segundo Ottoni, o objetivo de Fleury ficou claro durante os interrogatórios: obter o paradeiro de Toledo. Para isso, submeteu-o a todo tipo de violência.

Entre os cerca de 20 agentes que frequentaram a casa, Ottoni reconheceu, além de Fleury, o comandante Amorim do Vale, do Cenimar, e os agentes do Dops paulista José Carlos Tralli e Valdemar Brasileiro. A agência da Marinha era chefiada, à época, pelo capitão de mar e guerra Fernando Pessoa da Rocha Paranhos.

Demorou apenas dois meses até a repressão botar as mãos – e matar – o líder da ALN. Levado para o terceiro aparelho clandestino usado pela ditadura, Toledo teve um ataque cardíaco durante a tortura diante de Fleury e outros agentes do Dops paulista. O local, uma casa térrea e simples, sem forro ou luz elétrica, com piso de cimento e poucos cômodos, ficava num sítio a cerca de duas horas de São Paulo.

Ao contrário do que apontam relatórios oficiais, como o da Comissão Nacional da Verdade e o da Comissão da Verdade de São Paulo, o local não é o mesmo que leva o nome de Sítio 31 de Março, localizado em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista. Utilizados em momentos diferentes por agentes da repressão, têm em comum o fato de serem sítios usados como prisões clandestinas da ditadura.

Maria Baixinha é a baiana Maria de Lourdes Rego Melo, presa junto com Toledo, Maurício Segall (filho de Lasar Segall) e Viriato Xavier de Mello Filho no dia 23 de outubro de 1970. Todos “caíram” após Fleury ir a Belém (PA) cooptar o militante José da Silva Tavares, codinome Severino, que passou a colaborar com o delegado do Dops. Avessa a entrevistas, a ex-militante, hoje com 74 anos e moradora de um sítio em Lauro de Freitas (30 km de Salvador), conversou com a reportagem sem autorizar fotos ou vídeos.

Em 1963, Maria de Lourdes cursava filosofia na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e integrava o centro acadêmico. Procurada pela repressão logo após o golpe militar, partiu para o Uruguai. Voltou para São Paulo em 1965, onde concluiu a faculdade na PUC (Pontifícia Universidade Católica) e passou a lecionar e militar na ALN. “Vivi na mesma casa que Toledo. Ele precisou de alguém para alugar uma casa, e eu era o contato dele com outros. Era perto do aeroporto, bem pequena, alugada para receber os companheiros que vinham de Cuba”, relembra.

Lourdes estava num ponto de encontro com Segall ao ser presa e foi levada direto para o sítio. “Acho que foram umas três horas de deslocamento. Chegamos ao sítio no começo da noite e logo depois Toledo chegou com Viriato”, afirma. Atualmente com 90 anos e a memória se apagando, Segall descreveu a tortura no aparato clandestino em depoimento à CEMDP (Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos), em abril de 1996: “No sítio, bem primitivo, ao qual chegamos de olhos vendados, a iluminação era de velas, pois não havia luz elétrica. O sítio aparentemente tinha dois quartos, uma sala/cozinha e um banheiro. Os choques elétricos aplicados no pau-de-arara eram gerados num aparelho acionado por manivela manual. Tudo que se passava num dos cômodos, mesmo com porta fechada, se ouvia nos demais. […] Quando fui pendurado, o interrogador era o próprio Fleury”.

No sítio, segundo Maria de Lourdes, não havia militares. “Era só gente do Dops, Fleury e a equipe dele, queriam saber os pontos, endereços.” No depoimento, Segall afirma que havia pelo menos um agente do Cenimar no sítio.

A morte de Toledo ainda emociona a ex-militante baiana. Com a voz embargada, ela conta que o dirigente da ALN deu uma informação errada aos agentes para não se transformar num trunfo da repressão. “Toledo morreu junto de mim no sítio. Perguntaram a ele: como é sua pressão? Ele disse que era baixa, mas era alta, ele fez de propósito para morrer. Um herói.” Segundo o Relatório Especial de Informações nº 7/70, exemplar nº 18, do Ministério do Exército, encontrado nos arquivos do DOPS/SP e assinado pelo general de Brigada Ernani Ayrosa da Silva, Chefe do Estado-Maior do II Exército, “sendo submetido a interrogatório, Toledo foi acometido de crise cardíaca, que lhe ocasionou a morte, apesar da assistência médica a que foi submetido”.

A crise cardíaca de Toledo obrigou a turma de Fleury a levantar acampamento e abandonar o sítio, segundo Segall. Ele, Maria de Lourdes e Viriato – que hoje vive em Curitiba – foram levados para o Dops e depois para a Oban, em São Paulo. “Fui torturada de outubro a dezembro. Nesse ínterim fui para o hospital, fiquei inconsciente, tive hemorragia. Era pele e osso, pesava 42kg, mas era muito forte.” Hoje, ela reconhece que essa força não era maior que o braço da repressão. “Não éramos fracos, mas precisava ser super-homem. Eles estavam com tudo, todo o serviço de inteligência em cima. Não havia quem enfrentasse. Eles criaram outros grupos, eles se infiltraram. Com a força que eles tinham, era impossível vencermos”

REPORTAGEM

Andréia Lago

Ana Carolina Neira

Helder Ferreira

FOTOGRAFIA

Andréia Lago

 

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6 comentários

  1. […] As casas clandestinas de torturas na ditadura civil-militar, eram normalmente propriedades privadas, alugadas ou emprestadas por simpatizantes das Forças Armadas, ou ainda, ligadas a dependências de órgãos públicos com desvios de recursos. No período inicial do regime civil-militar, principalmente nos anos de chumbo (1964 – 1974), muitos endereços no Brasil formaram o que se chama hoje de “Mapa da Morte”.  […]

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