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’55 anos é pouco para esquecer’, diz mulher que foi torturada quando era criança pela ditadura militar

Em 1964, Iracema tinha cerca de 11 anos quando foi presa e torturada junto com sua mãe, uma professora militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Machucada, Iracema foi abandonada sozinha em uma praça no Recife, em Pernambuco. Nunca mais viu sua mãe, que se tornou uma desaparecida política. Sem família nem documentos, até a idade adulta sua vida foi itinerante e “sem título”, como ela própria define.

Por muito tempo, Iracema não se lembrava do próprio sobrenome e tinha apenas uma ideia nebulosa dos locais onde viveu antes de ser levada para o Rio de Janeiro por um casal de vizinhos. Mas a memória da tortura que sofreu nos porões do Doi-Codi no Recife permanece clara e traumática até hoje.

“Cinquenta e cinco anos é pouco para eu esquecer”, diz muito emocionada durante entrevista concedida ao G1 em apartamento em São Paulo, onde mora atualmente com um dos seus seis filhos.

A história de Iracema é um dos 19 casos revelados por Eduardo Reina no livro “Cativeiro sem Fim” (Editora Alameda), que foi lançado na última terça-feira (2). Em um trabalho de investigação de 20 anos, o jornalista conseguiu identificar relatos até então desconhecidos de crianças e adolescentes que foram sequestrados, torturados e alguns adotados ilegalmente por famílias de militares.

Iracema conta que ela e sua mãe foram abordadas na rua e jogadas em um carro escuro. Um dos militares bateu em seu rosto, o que provocou uma lesão em um dos olhos que comprometeu, anos depois, 80% de sua visão.

“Ele me deu um chute e uma pancada no rosto e eu fiquei atordoada. Entramos no carro. Não sei quanto tempo rodou, só sei que quando eu vim voltar a mim, estava com o olho muito inchado, doendo muito. Tinha sangue. E eu estava sem roupa, só com a roupa debaixo. E tomando choque, porque estava na água”, diz.

Na penumbra, ela também pôde ouvir os gritos de sua mãe. “Tinha uma luz assim, uma brecha para outro lugar. Eu ouvi os gritos. Eu vi um objeto que hoje eu digo que talvez fosse um alicate. Eu vi quando arrancou unhas”.

Depois, ela afirma que viu a silhueta de um homem que ordenou que ela fosse levada. “Chegou uma pessoa com umas botinas. Tinha uma luz muito forte, tipo um abajur. Eu só via a silhueta de uma pessoa alta que disse assim: ‘Mas o que vocês fizeram? […] Vocês têm que pegar ela, vestir com qualquer coisa, colocar no carro. Rode bastante a cidade e coloque ela em um lugar de fácil acesso’”.

Segundo o relato de Iracema, ela foi então colocada machucada dentro de um saco de estopa com um mau cheiro. Abandonada na Praça do Derby, no bairro Derby, ela foi encontrada por um casal que a acolheu.

Depois de ser achada na praça, Iracema foi entregue a um casal que foi responsável por uma longa viagem de fuga até o Rio de Janeiro. “Eu fui criada assim como te falei. Na casa de um, na casa de outro. Tem um monte de gente que eram meus padrinhos. Eu passei pela mão de várias famílias, mas nenhuma era a minha família”, diz.

Ainda adolescente, em uma dessas casas por onde passou ela conheceu um homem com quem teve dois filhos. Sem nenhum documento, trabalhou como doméstica e em um armazém. Com o fim do relacionamento, ela decidiu ir para São Paulo.

Somente em 1972, com aproximadamente 19 anos, é que conseguiu emitir no cartório de Francisco Morato sua primeira certidão de nascimento, que a permitiu registrar também os seus filhos. Como só sabia o primeiro nome da mãe, usou o sobrenome do casal que a levou para o Rio, sendo registrada como Iracema Alexandre de Souza.

Documento mostra a foto da professora Lúcia Emília de Carvalho Araújo, que foi fichada pelo DOPS por exercer “atividade subversiva” durante a ditadura — Foto: Reprodução/Eduardo Reina

Montagem com uma foto atual de Iracema de Carvalho Araújo ao lado outra de quando era criança — Foto: Marcelo Brandt/Arquivo pessoal

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