Mortos e Desaparecidos

CARLOS MARIGHELLA (1911-1969)

CARLOS MARIGHELLA (1911-1969)

Filiação: Maria Rita do Nascimento Marighella e Carlos Augusto Marighella

 

Data e local de nascimento: 05/12/1911, Salvador (BA)

 

Organização política ou atividade: ALN

 

Data e local da morte: 04/11/1969, São Paulo (SP)

 Líder da ALN e considerado inimigo número 1 do regime militar em 1969, foi atingido na aorta por uma bala disparada quase à queimaroupa,

 e não por projéteis desferidos à distância em um tiroteio, como alegaram os órgãos de segurança. Entre estas e outras evidências

inquestionáveis, um parecer médico legal confirmou: o corpo de Marighella não poderia estar na posição em que se encontrava nas fotos,

dentro do carro, caso a versão oficial correspondesse à realidade.

Carlos Marighella era um dirigente comunista conhecido nacionalmente há três décadas e vivia na clandestinidade quando foi morto, em

São Paulo, no dia 04/11/1969. Baiano de Salvador, filho de um imigrante italiano e de uma negra descendente de escravos, rebelde desde

os tempos em que estudava Engenharia, passou por diversas prisões desde 1932, quando, recém-filiado à Juventude do Partido Comunista,

escreveu um poema criticando o interventor de Getúlio Vargas na Bahia, Juracy Magalhães. Preso novamente em 1936, foi torturado durante

23 dias. Solto por decisão do ministro Macedo Soares em 1937, voltou às masmorras de Filinto Muller em 1939, derrotando novamente

os seus torturadores. Foi libertado em 1945, depois de anos nos cárceres de Fernando de Noronha e da Ilha Grande. Na CPI que investigou

as violências praticadas durante a ditadura de Vargas, o médico Nilo Rodrigues afirmou nunca antes ter presenciado tamanha resistência

a maus tratos e tanta bravura.

Foi eleito deputado pelo Partido Comunista à Assembléia Constituinte de 1946, ocupando a tribuna 195 vezes em apenas dois anos para

fazer inflamados discursos. Perdeu o mandato quando foi cassado o registro legal do Partido, no governo Dutra, sendo impelido à militância

clandestina até sua morte. Logo após abril de 1964, foi ferido a bala quando tentou resistir à prisão pela polícia política do Rio de Janeiro,

num cinema da Tijuca. Em 1967, rompeu com a direção do PCB e passou a dedicar-se a atividades de resistência armada, criando uma

organização político-militar que em 1969 adotaria o nome ALN.

Morreu em uma via pública de São Paulo, durante emboscada de proporções cinematográficas, na qual teriam participado cerca de

150 agentes policiais equipados com armamento pesado, sob o comando de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS que respondeu

a inúmeros processos por liderar um grupo de extermínio de marginais, auto-intitulado Esquadrão da Morte. A gigantesca operação

foi montada a partir da prisão de religiosos dominicanos que atuavam como apoio a Marighella. Na versão oficial, um deles foi levado

pelos policiais à livraria Duas Cidades, onde recebeu ligação telefônica com mensagem cifrada estabelecendo horário e local

de encontro na alameda Casa Branca.

As versões de sua morte guardam contradições e alimentam agudas polêmicas. Em algumas delas, chegam a ser mencionados dois tiroteios

simultâneos, em esquinas diferentes. Na versão de um relatório policial, Marighella foi precedido por um batedor e apareceu disfarçado,

usando peruca. Alguns documentos mencionam que ele chegou de carro, outros dizem que chegou andando. Para uns, puxou uma arma

da cintura; segundo outros, trazia dois revólveres em uma pasta, junto com granadas. Seus protetores teriam fugido pulando um muro ou

utilizando um furgão. Existe até mesmo um relato de que ele teria provocado sua própria execução, gritando “Abaixo a ditadura! Viva a

 

democracia!”. Carlos Marighella foi enterrado sem atestado de óbito. O sepultamento baseou-se em um ofício com seus dados pessoais,

fornecido pelos órgãos de repressão. Além disso, existe apenas uma guia policial assinada pelo legista Harry Shibata, médico que alcançaria

notoriedade em 1975, ao assinar um laudo farsante sobre a suposta morte por suicídio de Vladimir Herzog.

A precariedade de documentos, o confronto das versões, contradições e inverdades flagrantes constituíram o foco do trabalho da CEMDP e

a base para julgar se Carlos Marighella tinha morrido num enfrentamento ou se tinha sido executado. O relatório final apoiou-se, inclusive,

em documentos do DOPS e da Secretaria de Segurança Pública. O processo teve um pedido de vistas por parte do general Oswaldo Pereira

Gomes, representante das Forças Armadas na Comissão Especial, mas acabou sendo deferido em setembro de 1996.

Fato inegável é que o local da ocorrência não foi devidamente preservado ou não houve a necessária perícia, pois inexistiam fotografias

e exames dos objetos que comprovariam a tentativa de reação do emboscado. A suposta pasta e a arma do guerrilheiro apareceram no

Instituto Criminal de Balística 22 dias depois. Embora cientes da impossibilidade de recompor plenamente os fatos, passados tantos anos,

membros da CEMDP solicitaram parecer do médico legista Nelson Massini, que forneceu elementos conclusivos para afastar a possibilidade

de Marighella ter sucumbido em uma troca de tiros.

Uma das informações decisivas no parecer do médico é a de que o líder da ALN foi morto com “um disparo fatal no tórax esquerdo dado com uma arma a curtíssima distância”. Além disso, segundo o perito, o local não foi devidamente preservado pela polícia. Após analisar a foto do militante morto, o perito concluiu: “A posição do cadáver não é natural e sim forçada, revelando claramente que o corpo foi colocado no

 

banco traseiro do veículo. Esta informação é baseada nos sinais de tracionamento do corpo para dentro do veículo, revelado pelas rugas da

 

calça e seu abaixamento da cintura, bem como a elevação da camisa, indicando que o corpo foi puxado pela mesma (…) o corpo jamais teria

 

caído para dentro do veículo na posição em que se encontrava (…)”.

O laudo revela, ainda, incompatibilidade entre os ferimentos sofridos por Marighella e as perfurações encontradas no veículo. “Os projéteis que atingiram o corpo do senhor Carlos Marighella não tem correspondente na lateral do veículo por ele utilizado”. Ele se referia aos tiros que atingiram ambos os músculos glúteos. Como a vítima se encontrava sentada, deveriam existir pelo menos os furos correspondentes de entrada do projétil na lateral direita do veículo. Também não há perfuração correspondente do lado esquerdo,

onde ele foi atingido na coxa.

Ao final de consistentes ponderações, derivadas da análise das contradições detectadas e do parecer de Nelson Massini, o relator do processo

na CEMDP justificou seu voto favorável concluindo: “A morte de Carlos Marighella não corresponde à versão oficial divulgada na época pelos agentes policias. Os indícios apontam para a não ocorrência do tiroteio entre a polícia e seus supostos seguranças e indicam, também, que ele não morreu na posição em que o cadáver foi exibido para a imprensa. Carlos Marighella, afirma o parecer médico legal (…) foi morto com um tiro à curta distância depois de ter sido alvejado pelos policiais, quando já se encontrava sob seu domínio, e, portanto, sem condições de reagir. Confirma-se, assim (…), que a operação policial extrapolou o objetivo legítimo de prendê-lo (…)”.

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+ Informações.

CARLOS MARIGHELLA

Fundador e dirigente nacional da AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL

(ALN).

 

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+ Informações.

ALN – Ação Libertadora Nacional A ALN foi a organização de maior expressão e contingente entre os grupos que deflagraram ações de guerrilha urbana no período 68/73. Nasceu como cisão do PCB entre 1967 e 1968 e sua história está indissoluvelmente ligada ao nome de Carlos Marighella, antigo dirigente do PCB e possivelmente a liderança de maior carisma naquele partido fora Luís Carlos Prestes. A cisão que deu origem a ALN pode ser narrada pela própria trajetória de Marighella. Logo após o Golpe de 1964, esse dirigente comunista foi preso no Rio de Janeiro e

baleado quando tentava resistir à prisão, mesmo desarmado.

No ano seguinte escreveu “Porque resistir à prisão”, onde transparecem alguns questionamentos que levantava no interior da direção do PCB.

Marighella considerava que o partido tinha se revelado despreparado para a luta quando da crise de agosto de 1961, em que a renúncia do presidente Jânio Quadros jogara o país na beira de uma guerra civil e a resistência ao golpismo da direita fora dirigida por Brizola e setores nacionalistas, enquanto o PCB se mantivera apático e desnorteado. O despreparo se manifestara novamente, em abril de 1964. Tratava-se, portanto, de realizar a autocrítica de toda uma política sustentada pelo PCB naquele período, que classificou como sendo de

“subordinação a burguesia”. Argumenta que o papel de uma classe é definido pelo seu setor fundamental e que, no Brasil, o setor fundamental da burguesia estava vinculado a grupos multinacionais, sendo, portanto inimigo de qualquer revolução popular. Propõe deslocar para a área rural o eixo central das preocupações organizativas do partido, trocando o binômio da aliança burguesia-proletariado para proletariado-campesinato.

Por fim, considera necessário superar o pacifismo do PCB e desenvolver uma teoria revolucionaria para o Brasil, tirando o marxismo do “esclerosamento” em que se encontrava no país.

No final de 1966 Marighella se desliga da Comissão Executiva do PCB e já no início de 1967 lidera a Conferência Estadual do partido em São Paulo, que se posiciona contra as teses encaminhadas pelo Comitê Central em preparação ao VI Congresso. Passo seguinte rumo à constituição da ALN foi sua viagem a Havana, onde participou, em julho e agosto de 1967,

da assembléia da Organização Latino Americana de Solidariedade – OLAS – que reuniu setores da esquerda e grupos guerrilheiros de todo o continente, numa tentativa de articular um

plano de ação revolucionária que reeditasse, em certa medida, a experiência de Bolívar na Guerra da Independência.

Em Cuba, Marighella produz uma série de textos e cartas onde lança as idéias básicas que orientariam sua trajetória e da própria ALN. Além da crítica à visão do PCB sobre o papel da burguesia no processo revolucionário brasileiro, declara a necessidade de passar imediatamente a luta armada. Nesse momento, se afasta de outros setores dissidentes do PCB e timbra um caminho próprio quando rejeita a idéia de construir um novo partido. “A ação faz a vanguarda”, torna-se lema central da organização e a ALN começa a surgir com uma estruturação orgânica pouco precisa, sem uma direção coletiva, adotando a “autonomia tática dos grupos armados”, sob a consigna de que ninguém precisa pedir licença a ninguém

para fazer a Revolução.

Em fevereiro de 1968 é lançado o jornal oficial da ALN, com o nome de O Guerrilheiro, embora a denominação Ação Libertadora Nacional viesse a se estabelecer apenas em 1969. Esse jornal aparecia en tão sob a chancela do “Agrupamento Comunista de São Paulo” mais conhecido como “Ala Marighella”. É nesse mesmo ano, marcado por intensas lutas estudantis nas ruas de todas as capitais brasileiras, que a ALN desencadeia suas primeiras ações armadas, exercendo atração sobre contingentes expressivos de militantes, especialmente no

meio estudantil, e conquista em pouco tempo envergadura nacional. Em setembro, de 1969, a ALN ganha visibilidade nacional e internacional quando executa, conjuntamente com o

MR-8, o seqüestro do embaixador norte-americano no Brasil, cujo resgate foi a libertação de 15 prisioneiros políticos e a divulgação de um manifesto revolucionário pelos principais

meios de comunicação do país.

A escalada repressiva, redobrada após o seqüestro, terminou por atingir o próprio Marighella, que foi morto em 4 de novembro, em São Paulo, numa emboscada comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, num rumoroso episódio que envolveu, no noticiário sensacionalista encomendado pelos órgãos de repressão, o nome de vários religiosos dominicanos apontados como membros da ALN.

A sua morte abalou a capacidade de ação da ALN e a inexistência de uma direção colegiada só não foi mais danosa à sobrevivência do grupo porque o comando pessoal de Marighella já era notoriamente acompanhado de perto pela liderança de Joaquim Câmara Ferreira, o “Toledo”, também antigo dirigente do PCB.

Quando, no início de 1970, Câmara Ferreira passou a desenvolver um trabalho de reorganização da ALN, cerca de mil militantes e simpatizantes da organização já tinham sido detidos, especialmente em São Paulo. Procura-se estabelecer uma estruturação orgânica melhor definida e coloca-se ênfase na implementação de uma “Frente Revolucionaria” com as demais

organizações voltadas para a guerrilha urbana, que ficaria conhecida como “Frente Armada”.

Em todo o ano de 1970 as prisões efetuadas pelos órgãos de repressão continuam atingindo a ALN. O próprio “Toledo” é localizado na noite de 23 de outubro, seqüestrado e morto

sob torturas. A partir de então a ALN vai se ressentir da inexperiência das direções que se sucedem com as continuas prisões, incapazes de levar a termo um balanço auto-crítico que

volta e meia se insinuava nas fileiras da organização.

Começa a ser perceptível o isolamento político da luta armada, há carência de quadros e o trabalho político é insuficiente para repor a hemorragia de militantes atingidos pela repressão.

Em novembro de 1970 sai o numero dois de O Guerrilheiro, dois anos após o primeiro número, e a partir de 1971 é retomada com regularidade a publicação desse jornal. Entre 1971 e 1972 foi produzido também um jornal destinado à distribuição mais ampla, contendo propaganda das ações executadas: o Venceremos.

Documentos políticos de 1973 revelam um recuo em direção ao trabalho de massa, como tentativa de romper o circulo vicioso das operações armadas para manutenção da estrutura clandestina do grupo, que por sua vez existia basicamente para o desencadeamento daquelas ações.

A incapacidade de estancar as seqüências de prisões e a ferocidade redobrada com que a repressão se lançou á perseguição desse grupo após ele ter fuzilado alguns das forças repressivas acabariam comprometendo a sobrevivência da ALN. Entre abril e maio de 1974 ocorre um derradeiro fluxo de prisões que desarticula a última direção desse grupo.

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+ Informações.

CARLOS MARIGHELLA

Eleito deputado federal pelo PCB da Bahia em 2 de dezembro de 1945, com 5.188 votos, Marighella quis instruir-se em Direito Constitucional para atuar com desenvoltura na Assembléia Constituinte. Paulo Mercadante cedeu-lhe livros jurídicos, sendo Comentários à Constituição de 1891, de João Barbalho, o volume que mais apreciou. Bom orador, Marighella distinguiu-se como um dos autores do capítulo sobre direitos e garantias individuais da nova Constituição. Em dois anos de mandato, proferiu 195 discursos, denunciando as más condições de vida do povo e a crescente penetração imperialista no país. Defendeu a reforma agrária, a liberdade de culto religioso, o ensino leigo e o divórcio.

Na moldura da guerra fria, o obscurantismo prevaleceu e, sob fogo cruzado do governo Dutra, o PCB teve seu registro suspenso em maio de 1947. Os mandatos de seus parlamentares foram cassados em 7 de janeiro de 1948. Quando o presidente da sessão comunicou ao plenário a decisão, a bancada do PCB, comandada por Marighella, subiu nas poltronas do Palácio Tiradentes e, de punhos erguidos em sinal de protesto, começou a gritar uníssona: “Nós voltaremos! Viva o PCB! Viva o proletariado!”

A Juventude Comunista foi declarada ilegal, sedes do PCB fechadas, 143 sindicatos colocados sob intervenção e jornais comunistas empastelados à luz do dia. Meses após, sob rigorosa clandestinidade, Marighella assumiu a direção do Comitê Estadual de São Paulo. Continuou à frente da revista Problemas, que propagava aqui, como os demais periódicos do PCB, as teses dogmáticas do realismo socialista e as prédicas político-ideológicas de Moscou.

Em 1952, aos 41 anos, casado com Clara Charf, Carlos Marighella chegou à Comissão Executiva e ao Secretariado Nacional – órgãos máximos do partido. O PCB vivia um momento turbulento. Acuado, radicalizara sua plataforma no Manifesto de Agosto, de 1950, abandonando a política de frente democrática para pregar a luta armada, a ser liderada por um exército de libertação nacional. A orientação sectária levou os comunistas a pregarem o voto em branco na eleição presidencial que reconduziu, pela vontade popular, Getúlio Vargas ao Palácio do Catete.

Marighella endossou o Manifesto e, por extensão, o esquerdismo que isolaria o PCB das massas. No diário que mantinha à época, Paulo Mercadante anotou: “Carlos, conosco sentado, expunha a tese de que o partido, na linha justa que atendia aos interesses do povo, iria mobilizar, em progressão crescente, todas as classes exploradas, a fim de provocar, afinal, o salto necessário à tomada do poder. Carlos era sereno e sincero em suas exposições. Mesmo nelas não acreditando piamente, mantinha-se firme, sempre atribuindo às debilidades de sua origem burguesa a dúvida porventura existente”.

Como membro da Executiva, ele chefiou a primeira delegação de comunistas brasileiros à China, em 1952. Apesar de estar com prisão preventiva decretada, acusado de “subversão”, Marighella participou das lutas políticas e sociais dos anos 50, sobretudo a partir de 1952, quando começou a declinar a obediência ao Manifesto de Agosto. Carlos ajudou a organizar greves operárias em São Paulo e liderou a passeata de cem mil pessoas em protesto contra a carestia, em 1953. Clamou pelo monopólio estatal do petróleo; opôs-se ao envio de soldados brasileiros à Coréia; e combateu a desnacionalização da economia e a privatização do ensino. Foi uma das vozes influentes para que o PCB abandonasse, no IV Congresso, em novembro de 1954, o radicalismo estéril e voltasse a valorizar alianças eleitorais com os trabalhistas.

O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, abalou o mundo com as denúncias dos crimes praticados por Josef Stalin. “Marighella tomou o Relatório Kruschev como se fosse uma punhalada de Stalin. Vi-o chorar de raiva e indignação”, rememora Paulo Mercadante. “Ao contrário da maioria dos membros do Comitê Central, Carlos acatou o veredicto de Kruschev, descartando a versão de que o relatório era falso ou uma simples provocação.”

Marighella permaneceu no PCB, tendo sido relacionado, juntamente com o secretário-geral, Luiz Carlos Prestes, entre os dirigentes que se opuseram a um debate interno mais prolongado sobre os rumos do partido. A crise resultou no desligamento da facção ligada a Agildo Barata e de vários intelectuais. A fidelidade de Marighella levou Prestes a confiar-lhe uma tarefa crucial. Entregou-lhe uma pilha de cartas endereçadas a amigos nos estados, solicitando contribuições financeiras para quitar uma dívida de um milhão e quinhentos mil cruzeiros, contraída em empréstimos feitos pelo setor de finanças do partido. Marighella cumpriu a missão, e a dívida foi liquidada.

Em março de 1958, Marighella apoiou a Declaração Política que fundamentaria a mudança programática aprovada no V Congresso, em 1960. Os comunistas propugnavam agora por “um governo nacionalista e democrático”, recomendando à classe operária “aliar-se à burguesia ligada aos interesses nacionais”. O caráter da revolução brasileira, dizia o documento, era antiimperialista e antifeudal, nacional e democrático. Adotava-se a via pacífica para o socialismo, através da formação de uma “frente única nacionalista e democrática”, integrada pelo proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia e até setores de “latifundiários em contradição com o imperialismo norte-americano”.

Marighella ficou com Prestes e a maioria da Executiva quando do racha que resultou na fundação do Partido Comunista do Brasil (PC do B), em 1962. A convivência na direção do PCB, porém, deixou de ser harmoniosa. Marighella e Mário Alves questionavam a política de aliança das forças progressistas com a burguesia nacional. Também não viam com bons olhos a relação de Luiz Carlos Prestes com o presidente Goulart, entendendo que o partido se punha a reboque de posições reformistas. Na perspectiva de Marighella, o partido deveria renunciar à moderação excessiva e intensificar a pressão pelas reformas de base. Reiterava a necessidade de os comunistas se prepararem para a eventualidade de um golpe de Estado, em função do agravamento do quadro político-institucional.

O golpe militar veio em 31 de março de 1964. Marighella e demais líderes do PCB tiveram os direitos políticos suspensos por dez anos e foram indiciados em Inquéritos Policiais Militares. Carlos fugiu com a família minutos antes de seu apartamento alugado na Rua Corrêa Dutra, no Flamengo, ser invadido pelo DOPS. Ali, Carlos e Clara moraram legalmente durante os governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Nos 21 anos em que estiveram juntos, foi o único período em que puderam conviver à luz do dia, com endereço e telefone conhecidos.

Em 9 de maio de 1964, agentes do DOPS seguiram Marighella até um cinema da Tijuca, zona norte do Rio, que exibia o filme Rififi no safári. As luzes do salão acenderam-se e Marighella resistiu à voz de prisão gritando: “Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!”. Ferido à bala no peito, passou dois meses na cadeia, incomunicável, sendo exaustivamente interrogado até a concessão do habeas-corpus, impetrado pelo advogado Sobral Pinto. Teve que voltar à clandestinidade, em virtude da decretação de sua prisão preventiva pela Justiça Militar de São Paulo.

Menos de um ano depois, Marighella publicou Por que resisti à prisão. Os 18 capítulos englobam relatos autobiográficos, uma minuciosa descrição de sua prisão em 1964, denúncias de agressões a políticos, intelectuais e líderes sindicais, e uma avaliação sobre as conseqüências sombrias do golpe. Na parte polêmica do livro, expôs seu desacordo com o caminho pacífico para a revolução no Brasil. Apontou erros cometidos pelo PCB que teriam contribuído para o imobilismo das forças populares diante da queda de Jango. Considerou equívocos graves a política de conciliação com a burguesia (“a tendência da burguesia é para a capitulação sem resistência ante a direita”), a débil penetração no campo, o desprezo pela classe média, a subestimação do trabalho de base, o insuficiente empenho na formação política do proletariado e a confiança exagerada no dispositivo militar do presidente deposto.

Em 20 anos, o cenário alterara-se dramaticamente. Se no pós-guerra de 1945 a atmosfera de euforia com a liberdade e de esperanças no socialismo convencera Marighella a sustentar que “os golpes armados, a desordem, a violência não ajudarão a marcha da democracia para a frente”, o contexto político de 1964 lhe parecia irremediavelmente cinzento e hostil. “Nenhuma possibilidade legal pode ser desprezada […], mas é evidente que a solução do problema brasileiro por uma via pacífica se distanciou enormemente da realidade, depois do emprego da violência pelos inimigos do povo.”

Numa opção que geraria controvérsias dentro do PCB, ele passou a pregar a resistência armada como pressuposto para o fortalecimento da oposição à ditadura: “A realidade socioeconômica brasileira poderá levar ao aparecimento de guerrilhas e outras formas de luta surgidas da experiência das massas.” Citou a Revolução Cubana como “exemplo ilustrativo de que na América Latina – ou pelo menos em muitos países latino-americanos – nada há a esperar de uma via pacífica para a conquista da independência ou do progresso social”.

As teses de Por que resisti à prisão, em linhas gerais compartilhadas por Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender, foram derrotadas em reunião do Comitê Central do partido. A divisão tornava-se nítida: de um lado, o grupo de Marighella em oposição ao pacifismo; de outro, Prestes e a maioria do CC, que reafirmavam os postulados do V Congresso, deles partindo para elaborar uma tática frente ao novo quadro político.

No ensaio “A crise brasileira”, de 1966, Marighella demarcou o campo que poderia ser explorado com a guerrilha: “O Brasil é um país cercado pela atual ditadura militar entreguista e pelos círculos dirigentes norte-americanos, a cujo serviço se encontram os traidores que empolgaram o poder. Dentro das condições desse cerco, a guerrilha brasileira – com seu conteúdo nitidamente político – não pode deixar de significar um protesto, uma referência para a elevação da luta do nosso povo. […] Ninguém espera que a guerrilha seja o sinal para o levante popular ou para a súbita proliferação de focos insurrecionais. A guerrilha será o estímulo para o prosseguimento da luta de resistência por toda parte. Para o aprofundamento da luta pela formação da frente única antiditatorial. Para o esforço final da luta de conjunto, de todos os brasileiros, luta que acabará pondo por terra a ditadura”.

Suas idéias foram mal-recebidas no PCB e, em dezembro de 1966, ele renunciou à Comissão Executiva, com a seguinte declaração: “Desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente, junto com as massas, e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança.” Em franca oposição à linha vigente, sustentou que “a luta pelas reformas de base não é possível pacificamente, a não ser através da tomada do poder por via revolucionária e com a conseqüente modificação da estrutura militar que serve às classes dominantes. O abandono do caminho revolucionário leva à perda de confiança no proletariado, transformado, daí então, em auxiliar da burguesia, enquanto o partido marxista passa a ser apêndice dos partidos burgueses”.

Marighella manteve-se, entretanto, no Comitê de São Paulo, sendo reeleito por ampla margem de votos. A controvérsia no PCB não o impediu de compilar os poemas que escrevera desde 1929 e publicá-los em dois volumes, intitulados Uma prova em versos e outros versos e Os lírios já não crescem em nossos campos. Transcrevo um deles, “O país de uma nota só”:

Não pretendo nada,

nem flores, louvores, triunfos.

nada de nada.

Somente um protesto,

uma brecha no muro,

e fazer ecoar,

com voz surda que seja,

e sem outro valor,

o que se esconde no peito,

no fundo da alma

de milhões de sufocados.

Algo por onde possa filtrar o pensamento,

a idéia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,

o leite acabou,

a criança morreu,

a carne sumiu,

o IPM prendeu,

o DOPS torturou,

o deputado cedeu,

a linha dura vetou,

a censura proibiu,

o governo entregou,

o desemprego cresceu,

a carestia aumentou,

o Nordeste encolheu,

o país resvalou.

Tudo dó,

tudo dó,

tudo dó…

E em todo o país

repercute o tom

de uma nota só…

de uma nota só…

Mesmo desautorizado pelo Comitê Central, Marighella viajou com passaporte falso para Havana, onde, de 31 de julho a 10 de agosto de 1967, participou da 1ª Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). O evento reuniu dirigentes revolucionários de todo o Continente. Com o slogan “Um, dois, três, mil Vietnãs!”, Cuba ofereceu suporte aos movimentos de libertação nacional da América Latina.

Ao ter a confirmação da presença de Marighella, o Comitê Central do PCB enviou telegrama ao PC cubano alertando que ele não estava autorizado a representar o partido na Olas e ameaçando-o de expulsão. Marighella respondeu com uma carta comunicando sua desfiliação. Encerrada a conferência, ficou alguns meses em Cuba e regressou ao Brasil com a promessa de apoio dos cubanos a um foco guerrilheiro. Em fins de novembro, o PCB formalizou a sua expulsão.

O VI Congresso do PCB, realizado na clandestinidade em dezembro de 1967, aprovou resolução contra a via insurrecional. O partido conclamava os militantes a se empenharem numa ampla mobilização de massas contra o regime ditatorial. O horizonte revolucionário pressupunha uma gradual acumulação de forças e a organização da classe operária e das camadas antifascistas numa “frente democrática e popular”.

Em fevereiro de 1968, Marighella fundou, com Joaquim Câmara Ferreira, o Agrupamento Comunista de São Paulo. “Precisamos agora de uma organização clandestina, bem estruturada, flexível, móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e reuniões intermináveis”, explicou Carlos.

A Ação Libertadora Nacional (ALN) surgiu em julho de 1968, concebida como “embrião do exército revolucionário, a força armada do povo, a única capaz de destruir as forças armadas da reação, derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo”. A ALN rompia com a concepção de partido na tradição marxista-leninista, eliminando, nas palavras de Marighella, “o sistema complexo da direção que abrange escalões intermediários e uma cúpula numerosa, pesada e burocrática”.

“A ação faz a vanguarda”, era o lema da ALN, bem de acordo com a série de assaltos a bancos e carros-pagadores promovidos no eixo Rio-São Paulo, alguns dos quais chefiados por Marighella. O Pequeno manual do guerrilheiro urbano, escrito e editado por Carlos em junho de 1969 e traduzido em vários idiomas, tornou-se um guia sobre técnicas de preparação de ações armadas.

Com efeito, a ALN representou o primeiro racha sério na esquerda. Na fragmentação político-ideológica, despontaram organizações pró-luta armada, como o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares), Ação Popular (AP, depois Ação Popular Marxista-Leninista, APML), o PC do B e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

Na ótica do PCB, o confronto com o regime militar era uma saída equivocada e voluntarista, pois não levava em conta a correlação de forças desfavorável à esquerda. Temia-se que a guerrilha fornecesse pretextos para a direita radical intensificar a repressão e aniquilar os espaços de liberdade ainda existentes, isolando de vez os comunistas.

Tais argumentos não encontraram eco entre os adeptos da luta armada, cujos ímpetos para a ação frontal se orientavam pelas referências mencionadas por Daniel Aarão Reis Filho: “a da utopia do impasse, ou seja, a idéia de que o governo não tinha condições históricas de oferecer alternativas políticas ao país; e a de que as grandes massas populares, desiludidas com os programas reformistas, tenderiam a passar para expectativas e posições radicais de enfrentamento armado, revolucionário”.

Dois testemunhos ajudam-nos a compor o perfil de Marighella na fase atribulada da ALN. Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz – único sobrevivente do comando militar da organização – define Marighella como “a pessoa mais especial”. E justifica: “Não era um dirigente, mas um líder sem cargo.” Em depoimento ao movimento Tortura Nunca Mais, João Antônio Caldas Valença, o ex-frei Maurício, que conviveu com Carlos em 1969, quando ele se entrosou com os frades dominicanos em São Paulo, destacou:

Marighella tinha uma maneira de olhar muito aguda e um jeito penetrante de abordar nos diálogos com seus interlocutores. […] Era uma pessoa extremamente educada, gentil. Ouvia muito e se mostrava muito seguro nos argumentos quando falava. Tinha uma crítica muito aguda a toda uma vida de militância no PCB e ao seu processo de saída. Tinha toda uma reflexão crítica sobre a história das lutas populares no Brasil, das quais participara desde o período da ditadura de Vargas. Tinha um conhecimento da área técnica por estar ligado, no período dos seus estudos, às ciências exatas. Era poliglota, dominava os clássicos, embora pouco falasse a respeito.

Sua sensibilidade derramava em pequenos atos, por ocasião das suas visitas mais do que necessárias para o andamento da organização que dirigia, nas casas dos militantes da ALN. Lembrava do nome de cada filho do anfitrião. Tinha uma memória prodigiosa para guardar nomes e se preocupava com o desenvolvimento pessoal e a formação dos militantes. Tinha informação de cada pessoa que conhecera e guardava detalhes de conversas ou situações.

Segurança era uma preocupação constante dele no que se referia à ALN. Era exigente e tinha muita clareza do que queria sobre este ponto. Mas, ao mesmo tempo em que exigia, tinha uma ousadia de estar em qualquer canto que fosse necessário da cidade de São Paulo ou Rio de Janeiro. Era visto pelos que o conheciam nos locais mais inusitados, como praças do centro destas cidades. Ele não tinha medo deste tipo de locomoção desde que dentro de princípios de segurança que ele obedecia.

Segundo Valença, Marighella demonstrava “profundo respeito pelos dominicanos, sabia exatamente qual o papel do grupo de religiosos no processo de luta no Brasil, por isso respeitava sua religiosidade exposta, vivenciada várias vezes pelos frades. Chegou a estar presente em alguns atos litúrgicos, como a eucaristia, e notei nele um profundo respeito ao que estava sendo vivenciado por parte da comunidade (num colégio de freiras) em relação ao ato cristão”.

Entre as operações da ALN após a decretação do Ato Institucional nº 5, inclui-se o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, em parceria com o MR-8. Há versões contraditórias sobre o envolvimento de Marighella no seqüestro. Conforme Reinaldo Guarany Simões, membro da ALN, ele ficou de fora: “Marighella havia sido contra o seqüestro, pois significaria o incremento das ações urbanas, quando, na realidade, o que se buscava era o ‘caminho para o campo’, a maneira de como iniciar a guerrilha rural. Mas Joaquim Câmara Ferreira concordara, como sempre concordou quando se tratava de uma ação mais intrépida, que pusesse o regime em prontidão. Na época do seqüestro, Marighella estava em Goiás e só foi informado do mesmo através dos jornais”.

Vale lembrar que, em agosto de 1969, num folheto da ALN, Marighella advertira os mais afoitos para atos e avaliações triunfalistas no front guerrilheiro. “Alguns companheiros pensam que nossa Organização já está construída, perfeita e acabada. Tal pensamento não é correto. Nossa Organização vai se edificando à medida que a ação aparece. […] É perigoso pensar que temos uma força que ainda não possuímos.”

Fernando Gabeira, então no MR-8, assevera que Marighella apoiou o seqüestro de Elbrick: “Nossas relações com a ALN eram ótimas, apesar de algumas discordâncias programáticas. O encontro foi feito com o próprio Marighella, que aceitou a proposta com entusiasmo. Tudo seria feito com a maior rapidez”.

Seja como for, Marighella divulgou um texto, por ocasião da libertação dos 15 presos políticos trocados por Elbrick, afirmando estar seguro de que “o povo brasileiro aprova a atitude da Ação Libertadora Nacional e dos que com ela participaram do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos. Foi esta uma das maneiras que os revolucionários brasileiros encontraram para liberar um punhado de patriotas que sofriam nas prisões do país os mais brutais castigos impostos pelos fascistas militares”.

A maioria dos estudos sobre Marighella assinala que, no último mês de vida, ele julgava conveniente um recuo nas ações armadas, com o propósito de resguardar a ALN em face da ofensiva brutal dos órgãos de segurança. A palavra de ordem da repressão era desmantelar a guerrilha urbana e liquidar com as organizações. Começou a haver prisões, torturas e mortes de militantes de diferentes grupos. Marighella pensava em acelerar os planos para a implantação da guerrilha rural. Viajaria para a região central do país em 9 de novembro de 1969.

Na noite de 4 de novembro, Carlos foi assassinado pela polícia política, numa emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, a um mês de completar 58 anos. Sua morte e as sucessivas quedas, entre 1969 e 1971, atestaram a fragilidade da guerrilha no embate desigual com o aparato policial-militar e colocaram em foco erros cometidos pelas organizações na análise concreta da correlação de forças e na opção pela luta armada naquele momento específico da conjuntura brasileira.

Paulo Mercadante encontrou Marighella pela última vez em 1967. Ao sair de um consultório dentário na esquina das ruas da Quitanda e São José, no centro do Rio, Paulo caminhava em direção à Esplanada do Castelo, quando avistou aquele homem alto, corpulento e de cabeça raspada. Os óculos escuros não foram suficientes para ocultar a fisionomia do amigo a quem não via há anos. Paulo caminhou em sua direção, Carlos reconheceu-o e abraçaram-se. Foi um contato rápido como a situação exigia – Marighella vinha sendo caçado como inimigo número um do regime. Por uma estranha coincidência, Paulo soube de sua morte exatamente no local do derradeiro encontro. Vindo do mesmo consultório dentário, o advogado parou na banca de jornais e leu, arrasado, as manchetes dos jornais sobre o desfecho do cerco policial na Alameda Casa Branca.

O corpo de Marighella foi enterrado pelo DOPS, como indigente, no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Dez anos depois, em 10 de dezembro de 1979, por ocasião da cerimônia de traslado de seus restos mortais para o Cemitério das Quintas dos Lázaros, em Salvador, Jorge Amado escreveu um comovente texto sobre o seu velho companheiro na bancada comunista na Constituinte de 1946, lido à beira do túmulo pelo ex-deputado do PCB Fernando Santana. Eis o trecho final:

Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia, e desembarcas na aurora da Bahia, trazido por mãos de amor e de amizade. […]

Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade.

Aqui estás, plantado em teu chão, e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero. […]

Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor.

Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos.

Em maio de 1996, dossiê da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, do Ministério da Justiça, contestou a versão oficial de que Marighella morrera ao reagir à ordem de prisão dada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Conforme laudo do perito Nélson Massini, ele foi assassinado covardemente com um tiro no peito, à queima-roupa, depois de ferido por quatro disparos. A mando de Fleury, agentes do DOPS o atiraram morto dentro de um Fusca, para forjar o tiroteio. Em 11 de setembro de 1996, por cinco votos a dois, a Comissão de Mortos e Desaparecidos responsabilizou oficialmente a União pela morte de Marighella. O Ministério da Justiça homologou a decisão, determinando o pagamento de indenização à viúva Clara Charf.

Em 13 de dezembro de 1999, a Câmara dos Deputados fez sessão solene para lembrar os 30 anos de morte de Marighella, também evocados na exposição “Carlos Marighella 30 anos depois”, que percorreu o país após uma temporada no Memorial da América Latina, em São Paulo.

Marighella é nome de rua no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, e de um viaduto em Belém. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) mantém na antiga fazenda Cabaceiras, hoje Acampamento 26 de Março, em Marabá, no Pará, a Escola Carlos Marighella, que atende 300 estudantes matriculados no ensino fundamental e 100 alunos na educação de jovens e adultos. Inaugurada em 1973 no município de Sandino, província de Pinar del Rio, Cuba, a Escola Carlos Marighella desenvolve atividades voltadas ao trabalho agrícola.

O arquiteto Oscar Niemeyer projetou o Memorial Carlos Marighella, a ser construído pelo governo do estado do Rio de Janeiro no bairro proletário de Santa Bárbara, em Niterói, onde militantes comunistas costumavam reunir-se clandestinamente nos anos de chumbo. Na lápide da sepultura de Carlos, no Cemitério das Quintas dos Lázaros, Niemeyer desenhou-lhe a silhueta cravejada de balas, ao lado da frase que lhe serve de epitáfio: “Não tive tempo para ter medo”.

No importante ensaio “A chama que não se apaga”, de 1984, Florestan Fernandes reavaliou as idéias, os atos, a perseverança, as vicissitudes, os erros e os acertos que singularizam o legado de Carlos Marighella. E concluiu: “Um homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário, pode crescer depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua verdadeira estatura à distância. É o que sucede com Marighella. Ele morreu consagrado pela coragem indômita e pelo ardor revolucionário”.

* Dênis de Moraes é professor do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

Dênis de Moraes – 2001
denisdemoraes[arroba]bol.com.br

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Jorge Amado, para Carlos Marighella

“Chegas de longa caminhada a este teu chão natal, território de tua infância e adolescência.
Vens de um silêncio de dez anos, de um tempo vazio, quando houve espaço e eco apenas para a mentira e a negação.Quando te vestiram de lama e sangue, quando pretenderam te marcar com o estigma da infâmia, quando pretenderam enterrar na maldição tua memória e teu nome.

Para que jamais se soubesse da verdade de tua gesta, da grandeza de tua saga, do humanismo que comandou tua vida e tua morte.

Trancaram as portas e as janelas para que ninguém percebesse tua sombra erguida, nem ouvisse tua voz, teu grito de protesto.

Para que não frutificasses, não pudesses ser alento e esperança.

Escreveram a história pelo avesso para que ninguém soubesse que eras pão e não erva daninha, que eras vozeiro de reivindicações e não pragas, que eras poeta do povo e não algoz.

Cobriram-te de infâmia para que tua presença se apagasse para sempre, nunca mais fosse lembrada, desfeita em lama.

Esquartejaram tua memória, salgaram teu nome em praça pública, foste proibido em teu país e entre os teus.

Dez anos inteiros, ferozes, de calúnia e ódio, na tentativa de extinguir tua verdade, para que ninguém pudesse te enxergar.

De nada adiantou tanta vileza, não passou de tentativa vã e malograda, pois aqui estás inteiro e límpido.

Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia, e desembarcas na aurora da Bahia, trazido por mãos de amor e de amizade.

Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente.

Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue. Vieram te receber e conversar contigo, ouvir tua voz e sentir teu coração.

Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade.

Aqui estás, plantado em teu chão e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero.

Antonio de Castro Alves, teu irmão de sonho, te adivinhou num verso: “era o porvir em frente do passado”.

Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor.

Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”.

Texto escrito por Jorge Amado, amigo de Marighella e seu companheiro na bancada comunista da Assembléia Nacional Constituinte e na Câmara dos Deputados entre 1946 e 1948.

Lido por Fernando Santana em 10 de dezembro de 1979 – Dia Universal dos Direitos do Homem – por ocasião do sepultamento dos restos mortais de Marighella no cemitério das Quintas, em Salvador.

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1 comentário

  1. Paulo Oisiovici diz:

    A foto do documento de Marigjella do Gimnasium da Bahia quem divulgou pela primeira vez fui eu em minha página no facebook. A foto me foi gentilmente cedida historidora Débora Kelman responsável pelo memorial do referido colégio com o atual nome de Colégio Estadual da Bahia, o CENTRAL, onde também estudei.

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