Em junho de 1976, o teatrólogo brasileiro Augusto Boal desembarcou em Lisboa com a mulher e os dois filhos. A mãe, Albertina, recebeu um dos cartões-postais que ele enviou da capital portuguesa no dia 10 de junho: «Mamãe, cá estou eu na Santa terrinha. Vou ficar mais tempo do que pensava. Logo torno a escrever dando endereço certo. Um beijo». A viagem não seria apenas uma visita ao país de origem de sua família, mas se estenderia por cerca de dois anos, tempo que duraria o exílio em solo lusitano. Fugia de um regime totalitário que se instalava na Argentina, onde, por sua vez, se refugiara da ditadura militar instaurada no Brasil desde 1964.
«Não volte nunca!»
Em 1971, Augusto Boal já era um consagrado dramaturgo e diretor teatral por sua atuação no Teatro de Arena, companhia paulista que teve papel fundamental na renovação e nacionalização do teatro brasileiro. O reconhecimento o tornou um dos artistas mais visados após o golpe de Estado que obrigou a companhia a reorientar seus planos e repertório a fim de responder à nova situação política e driblar a censura. Naquele ano, foi preso e torturado, acusado de ser o portador de uma carta cubana, na qual se descreviam armamentos, supostamente entregue ao líder de uma organização comunista no Brasil. “Queriam provar que minha prisão era justa: queriam me transformar em guerrilheiro perigoso, atribuir-me ações que jamais pensei fazer”, conta na autobiografia Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas.
A prisão causou comoção internacional, e a pressão foi intensa. Na época, um prisioneiro podia ficar encarcerado dois anos sem ser acusado; três ou quatro, sem julgamento. Ou morrer antes disso. Mas Boal foi chamado a depor. Questionado se admitia ter entregado a carta ao líder da organização, negou. Não percebeu, entretanto, que, no texto do depoimento, admitia não ter sido ao líder que entregara a carta. Confessava, então, tê-la trazido – assim registrara o ardiloso escrivão. Assinou sem ler, e o juiz decretou que deveria ser ouvido em tribunal.
No dia do julgamento, os delatores deram versões diferentes das que contaram sob tortura. Antes da sentença final, foi-lhe concedido o direito de viajar para o Festival de Teatro de Nancy, onde o elenco da peça Arena conta Bolívar o aguardava. O convite havia sido feito antes da prisão. “Assinei documento prometendo voltar terminado o festival e estar presente no tribunal na hora da sentença. O funcionário que me fez assinar a promessa de retorno avisou: ‘Não prendemos ninguém segunda vez: matamos! Não volte nunca. Nesta linha: assine! Prometa voltar’”. Não voltou: juntou-se a centenas de exilados.
Buenos Aires foi a primeira cidade que o recebeu, terra natal da mulher, Cecilia Thumim Boal. Aí viveram por cerca de cinco anos com o filho de Cecilia, Fabian, e Julian, que nasceria alguns anos depois. Durante esse período, Boal deu aulas, concebeu o Teatro Invisível, dirigiu Torquemada, peça escrita quando esteve preso, e Revolução na América do Sul, também de sua autoria. Mas não conseguiu se integrar plenamente em uma cultura que não era a sua: “Exílio é meia morte, como a prisão é meia vida!”, escreveu na autobiografia, onde também registrou a importância das cartas nessa fase da vida: “Nunca joguei fora uma carta. Se não chegavam novas, relia as que tinha”. Antes usada para incriminá-lo, a carta agora estabelecia pontes transatlânticas, aproximava parentes e amigos, como o cantor e compositor Chico Buarque e o poeta Ferreira Gullar.
Em sua casa de Buenos Aires aconteceu a primeira leitura do Poema sujo, de Gullar; e foi a ele que Chico Buarque dedicou a canção Meu caro amigo, com parceria de Francis Hime. Em 14 de outubro de 1976, Boal viveu a «tremenda emoção», como diria mais tarde, causada pela fita cassete que a mãe levou para Lisboa em sua única visita: «Chico, oi, já ouvi a tua fita exatamente 8.795 vezes! Fiquei tão contente que você nem imagina». Três meses depois, repercutia o sucesso da música, lançada naquele ano, pelo compositor, no disco Meus caros amigos: «Meu caro amigo, tanta gente tem me badalado por causa do Meu caro amigo e das Mulheres de Atenas(1) que ultimamente quando eu me olho no espelho eu tenho a impressão de que estou ficando com os olhos verdes…».
Chico Buarque foi um dos mais importantes interlocutores do dramaturgo durante o exílio. A amizade e as parcerias o levaram a escolhê-lo como destinatário de outro postal que remeteu no dia 10 de junho de 1976. Assim como fizera no da mãe, também neste acusava sua chegada a Lisboa, mas através de uma referência à música Tanto mar, homenagem de Chico à Revolução dos Cravos: «Chico, aqui ainda encontrei muito alecrim e muito cravo vermelho. Vou ficar mais tempo do que precisava. Logo te escrevo. Um abraço». O movimento que pôs fim à ditadura salazarista motivara o crítico Carlos Porto a convidá-lo para uma temporada lusitana. Desejoso de sair da Argentina, onde a militarização e a repressão cresciam cada dia, e com promessa de contrato pelo governo português, Boal mudou-se para Portugal levando esperanças.
O trabalho prometido, no entanto, só se concretizou com a pressão da classe teatral e foi reduzido a seis meses. Ao fim de dois, artistas se revoltaram contra medidas do Ministério. Solidário, teve o contrato rescindido. Tornou-se, então, professor do Conservatório Nacional, ao lado de Carlos Porto. Convidados, com outros professores, a reformular o conservatório, levaram seis meses para chegar ao programa que consideravam perfeito. Foram exonerados.
«Exílio é duro, Cica querida»
Se as coisas não correram como esperava, esse segundo destino foi, sem dúvida, o mais familiar. Quando viveu em Portugal, o dramaturgo visitou Justes, terra dos seus pais, em Vila Real, e a visita rendeu uma carta à mãe na qual comenta a «semana de emoções enormes», e ainda uma bonita passagem em Hamlet…: «Valeu a viagem: visitei a janela de onde minha mãe olhava meu pai. Bendita janela! Caminhei pela rua em que se deram as mãos pela primeira vez. Imaginei o riso, arrepios».
Além disso, em Lisboa, concluiu o texto de Murro em ponta de faca, iniciado em Buenos Aires, sobre a vida dos exilados políticos; assumiu a direção artística d’A Barraca, convidado por Maria do Céu Guerra e Hélder Costa, diretores do grupo; encenou Zumbi, A Barraca conta Tiradentes, Zé do Telhado, de Hélder com música de Zeca Afonso, e a Feira Portuguesa de Opinião, de dezenas de artistas, no Museu de Arte Moderna, com o título de Ao qu’isto chegou!. Apesar de não ter feito nada novo em relação ao Teatro do Oprimido, dirigiu um espetáculo de Teatro Fórum no Porto,
na rua onde um torturador do serviço secreto havia sido capturado e, depois de assembleia popular, libertado; livre, matou um revolucionário. Para ele, o fato de a encenação acontecer anos depois no mesmo lugar da ação real intensificava o debate, exaltava.
A situação política em Portugal, porém, inspirava receios e apontava a necessidade de nova mudança. É o que revela em 20 de janeiro de 1977 na carta à atriz e amiga Cecilia Thompson: «No mais, ganhamos bem, mas mesmo assim Portugal dá uma insegurança danada: fecham-se faculdades, exterminam-se organismos de cultura popular. Resumo: este meu segundo exílio vai ser brevemente substituído por um terceiro. Onde? Sei lá». Uma semana depois, Boal escreve: «Exílio é duro, Cecilia, Cica querida. E olha que pra mim até que as coisas vão bem. Imagina pra quem não foi eleito presidente do conselho de gestão do Festival de Nancy».
O convite para trabalhar no mesmo festival de teatro que, em 1971, lhe possibilitou sair do Brasil – e salvar-se – foi feito, em 1977, por Jack Lang (em 1984, o ministro da cultura francesa também o condecoraria com a Ordem das Artes e das Letras). Boal, que já havia dirigido diversas oficinas no país, incluindo uma no Aquarium da Cartoucherie de Vincennes, em Paris, recebeu outros dois convites decisivos: de Émile Copfermann para publicar, nas Edições Maspero, o Théâtre de l’Ópprimé; e de Bernard Dort, para ocupar uma cadeira na Sorbonne-Nouvelle, Paris III. Estava delineado o terceiro e último exílio.
O regresso do exílio
Em 1978, a família foi viver em Paris, onde permaneceu por quase dez anos. Émile Copfermann propôs a criação de um Centro que difundiria a metodologia do Teatro do Oprimido e as ideias que o embasavam. Em janeiro de 1979, para além de toda a expectativa, trezentas pessoas se inscreveram. Houve quatro oficinas de quarenta estagiários cada, e quatro equipes de cinco aspirantes a Coringas. No mês seguinte, repetiram o processo e, em março, fundaram o Centre d’Étude et Diffusion des Techniques Actives d’Expression (Ceditade). No mesmo ano, no Brasil, foi promulgada a Anistia. O retorno temporário permitiu-lhe velar o corpo da mãe, que morrera quinze dias antes do seu regresso.
O país natal vivia o lento e gradual processo de reabertura política, no qual foi significativo o movimento das Diretas Já. A expectativa dos brasileiros em relação à Emenda Constitucional que estabelecia eleições diretas foi transmitida pela atriz Fernanda Montenegro em carta de 25 de abril de 1984, dia da votação: «Hoje, no Brasil, vivemos uma noite especial, pois estão sendo votadas as Diretas no Congresso e tudo pode acontecer. Multidões estão de plantão em todo o país. A votação vai pela noite». Embora tenha sido rejeitada naquela ocasião, já não havia mais como impedir a redemocratização iniciada pelos próprios militares e a devolução do poder aos civis, ocorrida em 1985. Em 1988, foi aprovada nova Constituição Federal e, no ano seguinte, realizaram-se eleições diretas para Presidente da República. A essa altura, Boal já estava novamente no Brasil com a família. Retornara em 1986, pondo fim a cerca de quinze anos de exílio.
As cartas mencionadas, além de outras correspondências e documentos, podem ser vistas na exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – cartas do exílio, com curadoria de Eucanaã Ferraz, no Museu do Aljube, de 25 de abril a setembro de 2017.
(1) A música foi composta por Chico e Boal para a peça Mulheres de Atenas, inicialmente intitulada Lisa, a mulher libertadora, adaptação de Lisístrata, de Aristófanes, feita por Boal. A peça nunca foi encenada.