História das Ligas Camponesas
Ligas Camponesas
As Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do Rio.de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964.
Formação
As ligas assim conhecidas foram precedidas de alguns movimentos de natureza idêntica que, em virtude de seu isolamento, não tiveram a mesma repercussão social e política. Este seria o caso, por exemplo, do conflito de Porecatu, no norte do Paraná (1950-1951), e do movimento de Formoso (1953-1954), que, no entanto, influíram de maneira durável nas respectivas áreas de origem.
O movimento que se tornou nacionalmente conhecido como Ligas Camponesas iniciou-se, de fato, no engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, nos limites da região do Agreste com a Zona da Mata de Pernambuco. A propriedade congregava 140 famílias de foreiros nos quinhentos hectares de terra do engenho que estava de “fogo morto”. O movimento foi criado no dia 1º. de janeiro de 1955 e autodenominou-se Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP). Coube a setores conservadores, na imprensa e na Assembléia, batizar a sociedade de “liga”, temerosos de que ela fosse a reedição de outras ligas que, em período recente (1945-1947), haviam proliferado abertamente na periferia do Recife e nas cidades satélites, sob a influencia do Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB). De fato, o movimento de Galiléia parece ter recebido influencia desses antigos núcleos, geograficamente próximos, sobretudo através de José dos Prazeres, dirigente da antiga Liga de Iputinga, nos arredores de Recife.
Existem muitas versões sobre a criação da Liga de Galiléia. A mais conhecida, e a mais lendária, atribui à entidade o objetivo de arrecadar recursos para enterrar os mortos, até então depositados em vala comum. Esta versão, divulgada por Antônio Calado em suas célebres reportagens no Correio da Manhã (setembro de 1959), tiveram enorme repercussão pública. Outra versão, mais completa, nos diz que a sociedade recém-criada tinha finalidades assistenciais mais amplas e que escolhera como presidente de honra o próprio dono do engenho, Oscar de Arruda Beltrão. O objetivo do grupo era gerar recursos comuns para a assistência educacional e de saúde, e para comprar adubos, com a finalidade de melhorar a produção.
A criação da Liga de Galiléia provocou a reação do filho do proprietário do engenho, temeroso, como era natural, de que a consolidação de um núcleo de produção camponesa pudesse sustar a utilização mais rentável da pecuária nas terras esgotadas do engenho. Nesta e em outras propriedades, para deslocar a mão-de-obra já sem utilidade imediata, e para tornar a terra mais lucrativa, lançou-se mão então do aumento generalizado no preço do foro, o que teve como conseqüência imediata a luta comum contra o aumento da renda da terra e contra as ameaças mais diretas de expulsão.
Para defendê-los na Justiça, os representantes da SAPPP procuraram Francisco Julião Arruda de Paula, advogado em Recife, que se havia notabilizado por uma original declaração de princípios em defesa dos trabalhadores rurais, a “Carta aos foreiros de Pernambuco”, de 1945. Julião aceitou defendê-los, assim como a muitos outros. A pendência se prolongou até 1959, quando foi aprovada a proposta de desapropriação do engenho, encaminhada à Assembléia Legislativa pelo governador Cid Sampaio com base num antigo projeto de Julião. A questão deu notoriedade aos camponeses de Galiléia e, ainda mais, transformou o primeiro núcleo das Ligas Camponesas no símbolo da reforma agrária que os trabalhadores rurais almejavam. Essa vitória localizada do movimento teve porém conseqüências contraditórias, pois se, por um lado, ela conseguiu apaziguar os ânimos e alimentar a esperança de acomodação através de soluções legais, por outro, estimulou as lideranças a prosseguirem na mobilização em favor de uma reforma agrária radical que atendesse às reivindicações camponesas em seu conjunto.
Nesse mesmo período, numerosos núcleos das Ligas foram criados em Pernambuco. Até 1961, 25 núcleos foram instalados no estado, com predominância visível da Zona da Mata e do Agreste sobre o Sertão. Dentre esses núcleos destacavam-se os de Pau d’Alho, São Lourenço da Mata, Escada, Goiana e Vitória de Santo Antão.
A partir de 1959 as Ligas Camponesas se expandiram também rapidamente em outros estados, como a Paraíba, estado do Rio (Campos) e Paraná, aumentando o impacto político do movimento. Dentre esses núcleos, o mais importante foi o de Sapé, na Paraíba, o mais expressivo e o maior de todos. A expansão da Liga de Sapé se acelerou a partir de 1962, quando foi assassinado seu principal líder, João Pedro Teixeira, a mando do proprietário local. Pouco depois esse núcleo congregaria cerca de dez mil membros, enquanto outros núcleos iriam se espalhar pelos municípios limítrofes.
Entre 1960 e 1961, as Ligas organizaram comitês regionais em cerca de dez estados da Federação. Em 1962 criou-se o jornal A Liga, porta-voz do movimento, que pretendia ter uma difusão nacional, mas que na realidade permaneceu ligado a um número reduzido de leitores, que eram os próprios militantes do movimento. Também nesse ano fez-se uma tentativa de constituir um partido político que se chamou Movimento Revolucionário Tiradentes. O que ocorreu, no entanto, é que enquanto as reivindicações camponesas pela terra, advogadas pelas Ligas, ganhavam corpo, as pretensões políticas da cúpula do movimento se esvaziavam diante de um movimento sindical organizado e mais ligado à Igreja e ao Estado.
Atuação
De um modo geral, as associações criadas tinham caráter civil, voluntário, e por isso mesmo dependiam de um estatuto e de seu registro em cartório. Para constituir legalmente uma liga, bastava aprovar um estatuto, registrá-lo na cidade mais próxima e lá instalar a sua sede. Como disse um jornalista da Paraíba, “a liga começa na feira, vai para o tabelião e ganha o mundo”.
As finalidades das Ligas eram prioritariamente assistenciais, sobretudo jurídicas e médicas, e ainda de autodefesa, nos casos graves de ameaças a quaisquer de seus membros. As mais comuns eram aquelas que, contrariando o Código Civil, obrigavam à expulsão sem indenização pelas benfeitorias realizadas, e nesse sentido específico a ação das Ligas parece ter sido bastante eficaz. As lideranças pretendiam também, a médio e longo prazos, fortalecer .a consciência dos direitos comuns, que compreendiam a recusa em aceitar contratos lesivos, tais como o cumprimento do “cambão” (dia de trabalho gratuito para aqueles que cultivavam a terra alheia) e outras prestações de tipo “feudal”.
A expansão e o crescimento de associações voluntárias como as Ligas ou associações do tipo da União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) se explica em função das dificuldades político-burocráticas que durante muitos anos impediram a criação e o reconhecimento oficial dos sindicatos rurais. De fato, embora o Decreto-Lei nº. 7.038, promulgado por Getúlio Vargas em novembro de 1944 como extensão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), previsse a sindicalização rural, só a partir de 1962 é que os sindicatos começariam a ser efetivamente reconhecidos, como proposta alternativa (e mais institucionalizada) às Ligas Camponesas, identificadas com a liderança de Francisco Julião.
As Ligas falavam em nome de uma ampla e diversificada categoria de trabalhadores que incluía foreiros, meeiros, arrendatários e pequenos proprietários, que produziam uma cultura de subsistência e comercializavam os excedentes produzidos em terra própria ou em terra alheia. Nesse sentido, convém lembrar que a utilização do termo “camponês” parece ter sido fator de auto-identificação e de unidade para designar categoria tão ampla em oposição a um adversário comum, politicamente denominado pelas lideranças como “o latifúndio improdutivo e decadente”. Sendo as camadas representadas basicamente dependentes da produção direta em terra cedida, alugada ou própria (minifúndios), podemos compreender porque se aglutinaram em torno de reivindicações ligadas à posse e ao usufruto imediato da terra. O processo de politização global ocorrido nesse período, sobretudo a partir de 1960, facilmente converteu demandas individuais ou localizadas pela posse da terra, tais como o Código Civil o previa, em reivindicações mais abrangentes, estimuladas pelas lideranças, de reforma agrária radical.
A mudança parece ter ocorrido, de fato, a partir do I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, realizado em Belo Horizonte em novembro de 1961, onde o grupo de Julião e das Ligas Camponesas se confrontou com outro, mais moderado, sob influência comunista, e sob liderança da ULTAB. Nessa ocasião, Julião recusou alianças e entendimentos mais duradouros com João Goulart, então presidente da República, que havia comparecido ao congresso. O resultado desse confronto foi a vitória formal de Julião e de seus seguidores, que advogavam então uma “reforma agrária na lei ou na marra”. Essa vitória, porém, foi politicamente enganosa, pois a partir daí o Estado reforçaria a ação sindical em detrimento da liderança das Ligas.
Podemos, por isso mesmo, definir as Ligas como um movimento autônomo, avesso à colaboração com o Estado. Esta posição, assumida em Belo Horizonte, confirmou-se por ocasião do plebiscito que restituiu plenos poderes ao presidente João Goulart (janeiro de 1963), e diante do qual, em posição extremamente minoritária, as Ligas pregaram – ou melhor, Julião pregou – a abstenção. O mesmo ocorreria durante o governo de Miguel Arrais em Pernambuco (1963-1964) – abertamente aliado das populações camponesas -, diante do qual algumas facções mais radicais das Ligas – já fora do controle das próprias lideranças – não hesitaram em criar confrontos radicais, de difícil solução, que levaram inclusive à prisão de alguns membros.
A recusa a colaborar com o Estado teve, portanto, conseqüências imediatas, concedendo às organizações sindicais mais oficializadas maior poder de controle sobre o movimento camponês do período. A partir daí, redefiniu-se o papel das Ligas, que passaram muitas vezes a expressar os interesses mais autônomos da base camponesa que representavam, em detrimento de uma liderança populista ligada a camadas e interesses políticos externos ao campesinato enquanto classe: estudantes, intelectuais, jornalistas, militantes de partidos políticos de origem urbana etc. Enquanto isso, a liderança intermediária, e de origem camponesa, manifestou muitas vezes sinais mais evidentes de autonomia. Nesses casos, ora coexistiam, ora eram absorvidas pelas organizações sindicais, mas, ao serem incorporadas, induziam os sindicatos a adotar – sob pena de perder o controle sobre seus próprios associados – as reivindicações básicas de luta pela terra às quais esses mesmos sindicatos eram inicialmente pouco sensíveis.
Por outro lado, os sindicatos – organizações substancialmente mais poderosas – diversificaram a plataforma das Ligas, acentuando a necessidade de estender ao trabalhador rural os benefícios sociais já usufruídos pelos trabalhadores urbanos e de fazer aplicar o recém-aprovado Estatuto do Trabalhador Rural (1963) ao campo.
Cabe destacar no movimento a importância das lideranças intermediárias, que constituíram o seu cerne. Em Galiléia, Zezé da Galiléia, João Virgínio e José Francisco; em Sapé, João Pedro Teixeira, Pedro Fazendeiro, Elizabeth Teixeira e João Severino Gomes foram alguns dos mártires do movimento e os que alimentaram a sua mística. Tinham em geral um nível educacional mínimo, eram pequenos proprietários ou exerciam, intermitentemente ou não, atividades artesanais, o que lhes permitia a autonomia de ação indispensável ao exercício da própria liderança.
No plano nacional o maior destaque coube à liderança de Francisco Julião, que aglutinou o movimento em torno de seu nome e de sua figura, reunindo estudantes, idealistas, visionários, alguns intelectuais, além de nomes como os de Clodomir de Morais, advogado, deputado, ex-militante comunista e um dos organizadores de um malogrado movimento de guerrilha sediado em Dianópolis, em Goiás (1963).
Julião foi eleito deputado federal por Pernambuco, após ter sido deputado estadual naquele mesmo estado. Foi nesse momento que as Ligas Camponesas chegaram ao ápice de seu prestígio político. A partir de 1962 essa influência decaiu, embora Francisco Julião mantivesse o prestígio do movimento. Essa notoriedade se deveu em grande parte às repercussões internacionais das Ligas. De fato, a Revolução Cubana alertou os políticos e a opinião pública dos EUA para os perigos de outros focos revolucionários semelhantes, e o temor recaiu sobre o Nordeste brasileiro, a mais extensa e povoada zona de pobreza do mundo ocidental.
As Ligas Camponesas foram como que um grito de alerta e de protesto que atraiu para Pernambuco a atenção do mundo e para seus núcleos mais expressivos visitas ilustres, como Robert Kennedy, Arthur Schlesinger Jr., Sargent Shriver, Jean-Paul Sartre e Iuri Gagarin, entre outros. A televisão e a imprensa, em diversos países do mundo, transformaram Julião e as Ligas em símbolo do Terceiro Mundo emergente. Nessa época, as aproximações de Julião com Cuba foram notórias, especialmente após viagem que realizou àquele país em 1960, acompanhando Jânio Quadros, e em 1961, seguido por uma centena de militantes.
Criadas em uma conjuntura favorável de liberalização política, que coincidiu com o governo Kubitschek, as Ligas seriam marcadas pelo período de ascensão do populismo. De fato, a existência mesma do movimento parece estar ligada às ideologias desenvolvimentistas, de integração nacional e de expansão da cidadania. Nesse sentido, as reivindicações camponesas ecoavam como parte de um único e amplo projeto.
A desagregação do movimento, em 1964, eliminou as organizações mas não desarticulou suas reivindicações básicas, que seriam incorporadas pelos sindicatos rurais no período seguinte (1965-1983). Convém notar que esses sindicatos rurais têm sido particularmente ativos nas antigas zonas de influência das Ligas.
Aspásia Camargo
Colaboração Especial
Viajei no mesmo avião que levava preso Francisco Julião. Creio de o ano era 1965, e íamos de Natal para Recife, onde ele seria transferido para Fernando de Noronha. Lembro-me de haver perguntado à minha Mãe porque “aquele moço” estava algemado?