Em 1964, o Raul Soares serviu de navio-prisão, se transformando num cárcere flutuante no Porto de Santos. Mas em seu interior não havia lei e nem respeito à dignidade humana. Direitos aos habeas corpus jamais foram respeitados. As ordens de soltura também não eram atendidas. Segundo relatos de sobreviventes, que constam em reportagens e livros sobre o navio-presídio, fazia parte da tripulação o tenente da Polícia Marítima Ariovaldo Pereira, que pelos relatos era o mais violento dos carcereiros. As ordens de soltura passavam por ele, mas consta que, de imediato, ele providenciava a abertura de um novo inquérito para impedir a saída do preso.
A ordem dentro do navio era uma só: a tortura psicológica. À noite os presos ouviam que um rebocador deixaria o Raul Soares durante a madrugada em alto mar. Os presos que recebiam habeas-corpus eram detidos novamente assim que pisavam no cais; Outros eram repetidamente trocados das celas próximas às caldeiras para as junto ao frigorífico do navio.
A comida era uma pasta intragável e os presos tinham que comer com as mãos, pois não existiam talheres no navio. Quem se recusava a comer sem os garfos, ficava sem as refeições.
Na década de 60, o navio era um velho de 64 anos e não tinha mais forças para navegar. Já inativo, o Raul Soares no cais da Ilha de Mocanguê, no Rio de Janeiro, foi rebocado pela embarcação Tridente, da Marinha, chegando no dia 24 de abril de 1964 ao Porto de Santos. Com uma semana, começou a sua função de navio-prisão, recebendo os primeiros prisioneiros políticos, sob a acusação de subversão, por se oporem ao governo militar que havia deposto o então presidente da República, João Goulart, em 31 de março. Em 23 de outubro, a embarcação foi desativada como prisão flutuante, retornando ao Rio de Janeiro, na manhã do dia 2 de novembro de 1964, onde foi desmontado e suas peças vendidas como sucatas. Assim chegou ao fim de forma inglória, àquele que é conhecido na história, não por seus feitos na navegação mundial, mas sim, como o símbolo do navio-prisão da repressão.
Três calabouços
Os calabouços do navio eram três, batizados, ironicamente, com nomes de boates da Boca do Lixo de Santos, os tradicionais inferninhos, bastante famosos na época, ou seja:
1- “El Marroco”, era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação, onde a temperatura passava dos 50 graus, sem nenhuma iluminação. Ainda assim era o melhor.
2- O “Night And Day”, era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada até o joelho.
3- O “Casablanca”, onde eram despejadas as fezes dos presos. Eram usados para quebrar a resistência dos presos políticos. A maioria dos presos do Raul Soares passou, ao menos, por uma dessas três salas.
Consta nos fatos narrados pelos sindicalistas que ficaram trancafiados no navio, que foi onde o ex-líder operário, Manoel de Almeida, contraiu a doença que o matou dois meses depois. E foi por lá que outro preso: Waldemar Guerra, transformou-se no mais resistente, permanecendo 16 dias num deles, sem comer.
Sem banheiro
Segundo ainda os relatos dos presos, não havia banheiro nas celas improvisadas. A conversa era proibida e nas poucas vezes em que foi possível a montagem de um sistema qualquer de comunicação (cartas, bilhetes, ou as conversas ao pé do ouvido ao estilo rádio – peão), a descoberta era punida com a proibição dos arejamentos e das idas ao imundo banheiro coletivo, sendo obrigados os presos a fazer suas necessidades no chão da própria cela.
A revolta dos sargentos
Rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais, sobretudo da Aeronáutica e da Marinha, em 12 de setembro de 1963, em Brasília, motivada pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder Legislativo, conforme previa a Constituição de 1946.
A Carta de 1946 proibia, embora de forma pouco explícita, que os chamados graduados das forças armadas (sargentos, suboficiais e cabos) exercessem mandato parlamentar em nível municipal, estadual ou federal. Nesse sentido, o direito à elegibilidade foi o móvel principal das campanhas da categoria. Durante o mandato de João Goulart (1961-1964), o movimento dos sargentos foi fortalecido devido à sua participação durante agosto e setembro de 1961 na campanha da legalidade, que garantira a posse de Goulart. Além disso, o movimento apoiava as reformas de base (agrária, urbana, educacional, constitucional etc.) preconizadas pelo governo.
Em 1962, os sargentos do então estado da Guanabara, São Paulo e Rio Grande do Sul indicaram candidatos próprios para concorrer à Câmara Federal, às Assembleias Legislativas e às Câmaras de Vereadores no pleito de outubro. Se na Guanabara, o sargento do Exército Antônio Garcia Filho elegeu-se deputado federal e, apesar do impedimento constitucional, tomou posse em 1º de fevereiro de 1963, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, os candidatos eleitos – respectivamente Aimoré Zoch Cavalheiro e Edgar Nogueira Borges, ambos sargentos do Exército – foram impedidos de assumir seus mandatos de deputado estadual e vereador.
A questão da elegibilidade mobilizou a classe em 1963. No dia 12 de maio, cerca de mil graduados reuniram-se no Rio de Janeiro para discutir a situação. Durante a reunião, o subtenente Gelci Rodrigues Correia declarou que a categoria não podia se comprometer a defender a ordem reinante no país, pois ela “beneficia uns poucos privilegiados” e referiu-se à possibilidade dos graduados “lançarem mão de seus instrumentos de trabalho… para exigir as reformas de base do governo federal”. Em 23 de maio, o ministro da Guerra Amauri Kruel puniu Gelci com 30 dias de prisão.
No dia 11 de setembro, o STF confirmou a sentença do TRE gaúcho acerca do impedimento da posse do sargento Aimoré, o que implicava que os sargentos, suboficiais e cabos eram declarados definitivamente inelegíveis. Na madrugada do dia 12, cerca de seiscentos graduados da Aeronáutica e da Marinha se apoderaram dos prédios do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), da Estação Central da Rádio Patrulha, do Ministério da Marinha, da Rádio Nacional e do Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. As comunicações de Brasília com o resto do país foram cortadas. Vários oficiais foram presos e levados para a base aérea de Brasília, foco da sublevação, onde também ficou detido o ministro do STF Vítor Nunes Leal. O presidente em exercício da Câmara dos Deputados, deputado Clóvis Mota, foi recolhido ao DFSP. Os rebeldes, chefiados pelo sargento da Aeronáutica Antônio de Prestes Paula, receberam o apoio de deputados da Frente Parlamentar Nacionalista, que compareceram à base aérea.
Cerca de 12 horas depois de sua eclosão, o levante foi sufocado por tropas do Exército. No dia 13, Prestes de Paula foi preso pela Polícia do Exército. Os prisioneiros, num total de 536, foram mandados para o Rio de Janeiro, sendo alojados num barco-presídio ancorado na baía de Guanabara. Outros líderes do movimento foram detidos no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Em 19 de março de 1964, os 19 sargentos indiciados em inquérito policial-militar (IPM) foram condenados a quatro anos de prisão.
Sérgio Lamarão
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