No início dos anos 1950, uma jovem brasileira que morava na Bélgica, onde o seu pai era diplomata, participou de um concurso de canto lírico, que tinha como prêmio uma bolsa de estudo no afamado conservatório musical Accademia di Santa Cecilia, em Roma. A moça acabou conseguindo o prêmio. Estudava no conservatório pela manhã e, no resto do dia, era interna em um colégio de freiras. Só saía para passear pela cidade, em um grupo de colegas, nos finais de semana. Em um desses passeios, a jovem se deparou com uma filmagem que estava sendo realizada. Segundo o seu depoimento, muito anos depois do ocorrido, ela se afastou do grupo do colégio e ficou olhando, maravilhada, uma cena sendo filmada. Então, o jovem diretor do filme, impressionado com aquela moreninha que tinha traços de índia, se aproximou e perguntou se ela não queria participar do filme. A moça concordou, mas disse que somente estava disponível nos finais de semana. Na semana seguinte, a jovem chegou ao local da filmagem trazendo um violão. O diretor, surpreso, perguntou por que ela havido trazido o instrumento. A moça disse que soube que ele gostava de música e passou a cantar, se acompanhando ao violão, uma música do folclore brasileiro.
Foi assim que a jovem de nome Evangelina, mas que todos chamavam Vanja, apareceu no filme, no papel da cigana Moema, tocando violão e cantando uma conhecida canção popular do Brasil: “Meu limão, meu limoeiro, Meu pé de jacarandá, Uma vez, tindolelê, Outra vez, tindolalá”. Aquele era o primeiro filme que estava sendo dirigido pelo jovem de nome Federico Fellini, que depois viria a se tornar um dos mais importantes cineastas de todos os tempos. O filme Luci del Varietá (no Brasil, Mulheres e Luzes) foi, conjuntamente, produzido e dirigido pelo iniciante Fellini e pelo já experiente Alberto Lattuada. Anos depois, Fellini, falando sobre o filme, diria que tanto ele como Lattuada se sentiam orgulhosos com aquela realização. Assim, em alto estilo, fruto de uma casualidade, a carioca Vanja Orico, filha do diplomata, político e escritor paraense Osvaldo Orico, estreou no cinema, como atriz e cantora, atividades que ela exerceria pelo resto da sua vida.
Vanja Orico em cena do filme Mulheres e Luzes
Como consequência do filme, Vanja Orico fez, na Itália, a sua primeira gravação, em um disco de 78rpm, com duas músicas, de um lado do disco o Meu limão, meu limoeiro e do outro Coplas, uma canção que ela compôs aproveitando um tema do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. A partir de então, Vanja começou a participar de programas no rádio e televisão italianos e fazer apresentações em Paris, em Portugal e na Bélgica. Por aquela época, veio ao Brasil para recitais no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que tiveram a participação do renomado pianista e compositor brasileiro Francisco Mignone. Com a repercussão do seu trabalho no filme de Fellini e Lattuada, Vanja Orico foi escolhida para um dos papéis principais do filme O Cangaceiro, do diretor Lima Barreto. O Cangaceiro foi o primeiro sucesso internacional do cinema brasileiro. Levado ao Festival de Cinema de Cannes, em 1953, O Cangaceiro obteve o Prêmio de Melhor Filme de Aventura, com uma menção especial para a música da película. O Cangaceiro obteve um êxito mundial, ficando cinco anos em cartaz na França e sendo exibido em mais de 80 países. Segundo depoimento de Vanja Orico, O Cangaceiro teria dado à distribudora norte-americana Columbia um faturamento maior do que o que fora conseguido pelo filme A Ponte Do Rio Kwai, um dos filmes de grande bilheteria daqueles anos.
O disco com as músicas de O Cangaceiro, lançado na França, com destaque para a interpretação de Vanja Orico para a música Mulher Rendeira obteve grande vendagem e alavancou a carreira de Vanja como cantora. Mulher Rendeira era uma toada popular que fora adaptado por Alfredo Ricardo do Nascimento, paraibano de Cajazeiras, que adotou o nome artístico de Zé do Norte. A música era um tema recolhido nos sertões nordestinos, de origem incerta, da mesma forma que a canção Asa Branca, que fora adaptada por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, embora alguns atribuam a autoria de Mulher Rendeira ao cangaceiro Lampião. Mulher Rendeira se tornou uma das músicas brasileiras mais conhecidas em todo o mundo, com regravações insólitas, como a de The Shadows, banda instrumental inglesa dos anos 1960 (a dos sucessos Apache e Tema para Jovens Enamorados). No disco com as músicas do filme O Cangaceiro, Vanja cantava, além de Mulher Rendeira, a canção Sodade, meu bem Sodade, de Zé do Norte. O paraibano interpretava duas músicas de sua autoria, Meu Pinhão e Lua Bonita.
Para divulgação do filme, a distribuidora Columbia programou apresentações de Vanja Orico em várias partes do mundo que incluíram, mesmo naqueles tempos de auge da Guerra Fria, a União Soviética e países do então bloco socialista. Vanja Orico se tornou, na época, a artista brasileira mais conhecida internacionalmente, situação só comparável àquela alcançada, antes, por Carmem Miranda. Após O Cangaceiro, Vanja participou de filmes na Espanha e na Alemanha e, paralelamente, desenvolveu a sua carreira como cantora fazendo shows e gravando discos na Europa e no Brasil. O sucesso de O Cangaceiro fez com que se iniciasse no cinema brasileiro o que se denominou o “Ciclo do Cangaço”, com filmes utilizando temáticas baseadas no banditismo surgido, no Nordeste brasileiro, na primeira metade do século passado. Vanja Orico atuou, além de O Cangaceiro, em mais três filmes nessa linha, Lampião, rei do cangaço (1965), Cangaceiros de Lampião (1967) e Jesuíno Brilhante, o cangaceiro (1972). Os quatro filmes de cangaceiros, que tiveram a participação de Vanja Orico, fizeram com que ela fosse chamada a Musa do Cangaço.
As constantes viagens de Vanja Orico do Brasil para o exterior fizeram com que o jornalista Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta) criasse nas suas crônicas a expressão “Vanja vai, Vanja vem”, significando tempo decorrido, locução que foi usada como título de um espetáculo que Vanja fez, no Rio de Janeiro, com o ator Grande Otelo. Embora tenha passado boa parte da sua juventude morando no exterior, devido à atividade do seu pai, Vanja Orico sempre construiu o seu repertório musical baseado na cultura brasileira. Mesmo nos discos gravados no exterior, sempre foram incluídas, majoritariamente, músicas do Brasil. Um fato relevante a ser destacado era o rigoroso critério que Vanja Orico adotava na escolha das canções que interpretava. Poucas cantoras brasileiras, na época em que ela começou a gravar, tinham a qualidade do seu repertório. Nos seus primeiros discos alternavam-se músicas folclóricas com canções de compositores como Dorival Caymmi e Joubert de Carvalho. Vanja foi uma das primeiras intérpretes a gravar a dupla Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ainda na fase anterior à bossa-nova (Eu não existo sem você), e foi ela quem fez as primeiras gravações das músicas Opinião e Acender As Velas, do sambista Zé Kéti, que, depois, ficaram vinculadas ao nome da cantora Nara Leão. Esse cuidado na escolha das canções que ia cantar permaneceu até os últimos discos feitos por Vanja Orico, como, por exemplo, o que gravou com a participação do Quinteto Violado, em que foram incluídas músicas de Dorival Caymmi, Geraldo Vandré, Capiba, Carlos Lira, Luis Bonfá, dentre outros.
Um episódio marcou a vida de Vanja Orico e fez com que ela deixasse, por algum tempo, o Brasil. Em outubro de 1968, uma manifestação de estudantes que estava sendo realizada na frente do Hospital das Clínicas, no Rio de Janeiro, foi reprimida violentamente pela polícia, com um saldo trágico: a morte do acadêmico de medicina Luís Carlos da Cruz, de 21 anos, ferimentos à bala em outros seis estudantes e a invasão do hospital pelos policiais, causando pânico entre os acientes.
No dia seguinte, um grande cortejo, com a participação de estudantes e artistas, dirigia-se ao cemitério do Caju, para o sepultamento do estudante assassinado, quando foi dispersado pela polícia com disparos de metralhadora, resultando em mais dois mortos. Para evitar um massacre, Vanja Orico, que participava da passeata, se colocou à frente dos manifestantes, ajoelhou-se no meio da rua e gritou para os militares: “não atirem, somos todos brasileiros”. A atriz foi retirada, à força, do local, sob golpes de cassetetes e levada presa. Como Vanja Orico era um nome conhecido internacionalmente, as fotos estampando a brutalidade dos militares contra ela foram publicadas nos principais jornais do mundo. Três dias depois, ela foi solta, mas, a situação do Brasil, em poucos dias, se agravaria e Vanja resolveu deixar o País, se fixando em Paris.
Em 13 de dezembro de 1968, o regime militar editaria o mais autoritário e ditatorial dos seus atos, o famigerado Ato Institucional nº5. O Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais foram fechados, mandatos parlamentares cassados, direitos civis foram suspensos, inclusive de três ministros do STF, foi extinto o habeas corpus para delitos políticos e estabelecida a censura nos rádios, jornais e televisões. Muitas pessoas foram presas, dentre elas Carlos Lacerda, um dos principais líderes civis do golpe militar de 1964, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck que, veladamente, apoiara o golpe, o velho advogado e arraigado anticomunista Sobral Pinto, jornalistas, escritores e artistas, como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Começava a Ditadura Escancarada, conforme o jornalista Elio Gaspari denominou o período, em um título de um dos seus livros.
Depois de passar algum tempo no exterior, Vanja Orico retornaria ao País, retomando a sua carreira de atriz e cantora, mas sem o destaque que, anteriormente, alcançara. Participou de películas, fez roteiros para outras, e dirigiu um filme. Como cantora, nas suas apresentações e nos discos que gravou, manteve sempre uma alta qualidade na escolha do seu repertório, sem fazer concessões comerciais. Pela grande projeção que teve, como atriz e cantora, durante pelo menos duas décadas, é inconcebível que o nome de Vanja Orico seja omitido nos livros que tratam da história da música popular brasileira na segunda metade do século passado. A Musa do Cangaço, como ficou conhecida, morreu no Rio de Janeiro, em 2015, aos 83 anos.
Flávio Ramalho de Brito
Companheiro Aluizio Palmar,parabéns pelo belo artigo sobre a Vanja Orico e sua atuação na divulgação da cultura brasileira junto à
musica e cine, pouco falada,divulgada e conhecida
pelos brasileiros. Obrigada pelo seu execelente trabalho./ Célia de M.L.
Que site maravilhoso! Que artigo espetacular! Eu, particularmente, não tinha conhecimento sobre a grandeza e o talento de Vanja Orico. Assim como a grande maioria dos brasileiros, que não conhecem seus heróis e seus grandes astros. Infelizmente. Parabéns pelo ótimo artigo e excelente site, Aluízio Palmar!