Cálice
Composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, a música “Cálice” é mediada por metáforas e faz um contraste com a Bíblia. A sonoridade tem grande importância e denuncia a ditadura militar no Brasil, o modo como as pessoas tinham que ficar caladas. O refrão e primeira estrofe “Pai, afasta de mim esse cálice” foram escritos em uma Sexta-feira Santa. A música foi composta para o show Phono 73, realizado em maio de 1973. No dia do show, souberam que a música foi proibida e Chico decidiu cantá-la sem letra. Porém, a gravadora desliga os microfones e ele acaba desistindo. Em 1978, a canção foi liberada e incluída no LP Chico Buarque, do mesmo ano.
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
A palavra “cálice” é escolhida propositalmente por causa de sua sonoridade, que nos lembra, além do significado do substantivo, a forma verbal “cale-se”. Este verso é um pedido ao Pai (Deus), para afastar o silêncio causado pela ditadura. “Cálice” é um objeto que pode ter algo em seu interior e, no caso, o que há dentro desse silêncio ditatorial é o preço da vida de pessoas e o sangue das vítimas das repressões e das torturas. É importante ressaltar que toda a música faz uma analogia entre a Paixão de Cristo e a situação das vítimas da Ditadura.
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
A metáfora remete à dificuldade de “beber dessa bebida amarga”, ou seja, à dificuldade de viver nessa situação, presenciar toda a repressão e não poder fazer nada. O “engolir a labuta”, significa ter que aceitar uma condição de trabalho desumana, como se fosse algo normal. Representa o ideário de esquerda, o desejo de mudança estancado no peito e, por conta da censura, calado na boca. Já o silêncio na cidade seria o silêncio causado pela censura, que, como não se podia falar nada contra o governo, parecia até que não existia opiniões contrárias, pessoas contrárias ao regime militar.
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
O sentimento de desgosto em ser filho da santa (continuando na temática da religião), que é a “pátria mãe”. Os autores dão a entender, pela rima subentendida, que prefeririam ser filho de uma prostituta (“puta”), representada pelo “da outra”, do que ser filho da “santa” com esse regime político. Buscam uma realidade que fosse “menos morta”, na qual as pessoas não tivessem extintos os seus direitos. Já o último verso, seria uma “denúncia” da mentira do “milagre econômico”, que era uma farsa, uma vez que as pessoas não estavam melhorando de vida, mas era isso era apregoado como verdade e o povo era forçado a acreditar.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Essa estrofe mostra o descontentamento em acordar sem poder expressar-se, principalmente sabendo que ocorriam muitas torturas à noite. O eu-lírico se sente tão preso e atordoado, que chega a cogitar deixar de falar o que pensa por meios pacíficos e partir para a luta armada, pois, assim, poderia ser ouvido de forma mais contundente.
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Aqui, o eu lírico faz uma denúncia dos métodos utilizados para silenciar alguém por meios de torturas, as quais levavam as pessoas a perderem seus sentidos, mas, mesmo assim, ele permanece atento, esperando as “boas novas” que viriam. Entretanto, não há certeza se essas “boas novas” virão, pois podem ser “más novas”, como o surgimento de mais alguma imposição da Ditadura, metaforizada na imagem do “monstro da lagoa”.
De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta
O porco é um animal pesado, pouco ágil. “A porca”, por sua vez, simboliza a ditadura militar, que, de tão corrupta e falha, não ia pra frente. Já a faca muito usada mostra o desgaste do sistema vigente na época, que não era eficaz.
Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
A porta, biblicamente, representa um novo tempo e o primeiro verso mostra a dificuldade em mudar-se a situação e começar uma nova. A palavra está pronta para ser dita, mas não pode. Também faz uma alusão aos regimes ditatoriais do mundo inteiro, calando seu povo e deixando-os com ideologias presas no peito, proibidas de serem reivindicadas.
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
O eu-lírico se pergunta se adianta ter uma boa vontade, se o mundo está de cabeça pra baixo. Faz referência à frase da Bíblia: “paz na terra aos homens de boa vontade” e mostra que, mesmo sem poder falar, as pessoas não deixam de pensar.
Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Os autores, agora, referem-se à volta da esperança de uma possível mudança: o fim da repressão.
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)
A última parte mostra o desejo do eu-lírico de fazer suas próprias regras, de cuidar da sua vida. Mostra que a repressão não deveria opinar e julgar alguém que não possui as mesmas “crenças” que ela. Para um indivíduo ser dono de suas próprias ideias, ele deve pensar de acordo com sua ética e razão, e não de acordo com dogmas impostos. E, no último verso, os compositores, para denunciar a situação brasileira, expressam-se através da imagem de um dos meios de torturas usados (queimar óleo diesel em uma sala para deixar os torturados embriagados). Por fim, mostram que mesmo com toda essa situação difícil, os subjugados tinham seus truques para “fugir” da ditadura e reagir, como por exemplo, fingir um desmaio durante essa seção de tortura, para não serem molestados.
Musica
A canção “Angélica” foi composta em 1977 e faz referência às mulheres que perderam seus filhos durante o período da ditadura. Chico parte do caso da estilista Zuzu Angel, que perdeu seu filho Stuart (militante de esquerda contra o regime militar) de um modo muito cruel: arrastado por quilômetros com a boca amarrada no escapamento de um carro. O corpo do jovem, assim como o de muitos outros jovens, foi lançado ao mar, e Chico não deixou passar em branco a dor das mães que sabiam da morte de seus filhos, mas não podiam enterrá-los, ver a morte de perto e entendê-la, apenas a sentiam:
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Zuzu passou a investigar a morte de seu filho e denunciar o que estava acontecendo. Como o pai de Stuart era estadunidense, ela consegue alguns contatos com senadores do país norte-americano e mantinha Chico informado de todas as suas descobertas. Na manhã do dia 14 de Abril de 1976, a estilista vai até a casa dele e deixa com ele documentos e três camisetas com anjinhos para cada filha dele. Nesse mesmo dia, ela morre em um atentado que os militares fizeram parecer um acidente de carro.
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Durante toda a canção, o eu lírico fala sobre o fantasma dos filhos desaparecidos, tanto em vida, quanto em morte. Sua música remete o ouvinte à dor de perder um filho sem saber que o perdeu, às mães que, mesmo sabendo que não verão mais seus filhos, continuam tendo uma ponta de esperança e convivem com isso até o fim.
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Apesar de Você
Escrita por Chico Buarque em 1978, Apesar de Você fala sobre o AI-5. Diferente de algumas músicas de Chico, essa tem um tom de otimismo, pois faz uma mostra o tempo todo uma esperança de que o povo consiga vencer a ditadura. Logo no começo, a primeira frase da música é “Amanhã vai ser outro dia”, que começa em um volume mais baixo e vai ficando mais alta a cada repetição, representando a voz do povo ficando cada vez mais alta.
Amanhã vai ser outro dia
Continuando, o compositor refere-se a alguém, que chama de “você”, que seria o General Médici. A música vai mostrando uma mudança nos tempos. No início, relata o que estava acontecendo na época, ou seja, a submissão do povo aos militares, a falta de liberdade de expressão, o medo da repressão.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Ainda há uma referência ao fato dos militares estarem cometendo atos cruéis com a justificativa de “deixar o país em ordem”, julgando o que eles pensavam ser o certo ou errado e,conseqüentemente, acabando com a vida de muitas pessoas.
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Porém, no refrão, Chico já mostra o futuro que o povo queria e estava lutando para tê-lo. Refere-se a um período próximo em que as pessoas fariam uma revolução, tirando os militares do poder e ganhando seus direitos de volta. Relata a esperança de ganhar essa “guerra” entre militantes de esquerda e militares.
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar
Há também um desabafo pessoal, que podemos considerar um desabafo de muitos brasileiros, pois fala sobre a revolta interna de ter que se guardar e sofrer tanto, jurando que cobrará com juros toda essa repressão, afinal, uma hora ou outra a ditadura teria de acabar e o povo não teria mais de se calar.
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
De “desinventar”
Você vai pagar, e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Por fim, como dito anteriormente, a música faz referência ao tão sonhado fim da ditadura, que o eu-lírico cita como se já soubesse que aconteceria.
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Claramente, Chico Buarque coloca um tom otimista em Apesar de Você, que contagia os que escutam e transmite a esperança sentida por milhares de brasileiros que lutavam contra a Ditadura Militar. A música faz uma crítica constante à repressão, mas mostra que isso não é definitivo, porque o povo há de reverter à situação. Podemos compará-la a uma frase de Che Guevara “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira.”[6] e é nessa esperança que a música se espelha, em milhões de brasileiros revogando pelos seus direitos e sua voz, esta que os militares já não poderão mais conter “amanhã”.
Roda-Viva
Chico Buarque compôs Roda-Viva para a peça homônima, em 1967. A letra fala sobre a sensação de impasse perante o período que estava vivendo. Há duas formas de interpretá-la: a roda-viva sendo vista como o cotidiano e suas tarefas diárias, ou a roda-viva fazendo referência à ditadura e opressão.
Começa mostrando o sentimento de impotência, a angústia de ver a vida passando sem poder fazer nada, apenas seguindo o percurso que seria seu, mas está sob controle ditatorial. O mundo estava de cabeça para baixo, na visão esquerdista, e a opressão tentava alienar o povo cada vez mais. As pessoas mantinham o desejo de cuidar do seu próprio destino, mas este era levado pela roda-viva, que, no caso, pode estar demonstrando a ditadura.
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
O refrão se repete no final de cada estrofe, pois, assim, realça a ideia de repetição, do cotidiano sempre igual. A combinação da palavra “roda”, citada várias vezes, com a melodia, proporciona uma sensação rotatória. O tempo está passando rápido, e você mantém seu coração batendo para sobreviver, mas, não para viver. Enquanto vai levando uma vida em que você é um protagonista passivo, as coisas vão acontecendo de uma forma natural, como o mundo rodando, a roda-gigante, o moinho e o peão.
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Há a comparação do menor ao maior, referindo-se a uma única pessoa remando contra uma corrente inteira, sem conseguir mudar alguma coisa – visando a luta do povo contra a opressão da ditadura-. Então a pessoa desiste, voltando ao fluxo e se questionando sobre as mesmas coisas de quando ia contra a corrente. As roseiras, podendo ser interpretadas como fonte cultivada de nova vida (ou fonte cultivada de novas ideias), são destruídas pela roda viva, antes que floresçam. E essa rosa viva, acaba se tornando mais viva do que nós mesmos.
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
A canção faz uma referência ao samba acabado também, talvez por conta da censura, que não permitia que os artistas fizessem músicas livremente. As saias rodadas são típicas do samba, e estas já não rodam mais, ou seja, o samba está acabado, já não pode mais existir com liberdade. Então, junto ao samba, acaba o envolvimento com as outras pessoas, as conversas de “papo-furado” e a participação política. Além de mostrar que até os artistas sofriam com a censura.
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Na última estrofe, o autor faz um “resumo” sobre toda a música. Demonstra que toda essa vontade de participar do movimento contra a ordem opressora, ser mais ativo na sua própria vida, liberdade de expressão etc, foram apenas desejos passageiros, que a brisa primeira levou.
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
Já os últimos versos soam como um pedido de “trégua” por desistência, como a frase “Pare o mundo que eu descer”.
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
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