DOI CODI DOPS dos Estados Geral Repressão Torturas

EZEQUIAS BEZERRA DA ROCHA, ASSASSINADO NO CENTRO DE TORTURA DO IV EXÉRCITO, EM RECIFE

10 de março de 1972 foi o dia em que Delegacia de Segurança Social de Recife/PE expediu o Pedido de Busca número 12-DSS/72, determinando a “localização e captura de elemento subversivo”, de nome Ezequias Bezerra da Rocha. Ezequias era o proprietário do carro que tinha sido utilizado pelo casal Luís Alberto e Miriam Verbena, cuja morte relatamos no dia de ontem, 09 de março, nesta série.

Nos idos de 1964 a 1969, o jovem estudante Ezequias chegou a ser fichado e investigado porque participou de greves e foi sócio da Sociedade Cultural Pernambucana Brasil-União Soviética. As investigações concluíram que ele era um “comunista convicto com base filosófica”, mas nenhum fato foi apurado contra ele. Na verdade, de acordo com os depoimentos de alguns militantes políticos, Ezequias não possuía militância ativa no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era apenas um simpatizante.

Ele nunca viveu na clandestinidade e não foi mais procurado pelos órgãos da repressão a partir de 1969. Uma vez formado, Ezequias se casou e passou a trabalhar como geólogo e professor de Matemática, sem exercer qualquer atuação política. Seu plano para aquele ano de 1972 era se mudar com sua esposa, Guilhermina Bezerra da Rocha, para Salvador, onde faria um curso de pós-graduação em Geofísica.

Neste ínterim, enquanto se preparava para a mudança, Ezequias emprestou o seu carro para o casal de amigos Luís Alberto e Miriam. Quando soube do suposto acidente, foi voluntariamente até os órgãos policiais de Caruaru/PE para tentar resgatar seu carro, pois nada tinha a esconder. Foi orientado a voltar outro dia. A atenta delegacia de (in)segurança social certamente associou seu nome aos fichamentos do passado e, no dia seguinte, 10 de março, expediu a ordem de busca.

Durante a noite, por volta de 1h00, madrugada do dia 11, Ezequias e Guilhermina foram presos e levados sob custódia DOI do IV Exército (Recife), que colocou o casal também à disposição do DOPS, da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Ezequias nunca mais foi visto.

Relatórios oficiais emitidos nos meses seguintes informaram que, na noite do dia 11, ele foi conduzido para “cobrir um ponto’” e, nesta ocasião, teria sido resgatado por seus “companheiros de subversão” e os órgãos policiais não tiveram mais notícias sobre seu paradeiro.

O depoimento de Guilhermina, presa na mesma ocasião, narra uma versão bem diferente e, infelizmente, muito mais verossímil. De acordo com ela:

“Fomos conduzidos para dentro e eu fui posta numa cela enquanto Ezequias foi ao interrogatório. Mas aquilo não era interrogatório, era um verdadeiro massacre aplicado numa pessoa indefesa. De onde eu estava ouvia a pancadaria. Foram horas terríveis. Aquilo parecia mais um pesadelo. Eu queria acordar e não conseguia. Houve momentos em que pensava que o Quias [Ezequias] estava morto, pelo silêncio de dor que se fazia, pois não era possível, tantos bater tanto numa única pessoa. Depois de muito tempo eles pararam de torturá-lo e o colocaram numa cela perto da minha. Quando ele passou por mim, carregado por policiais, parecia um farrapo humano, havia sangue por todas as partes do seu corpo. Não conseguia nem ficar de pé. […] Dormi vencida pelo cansaço. Ao me acordar, procurei imediatamente por ele. Os carcereiros diziam-me simplesmente que não tinha sido preso nenhum Ezequias. Insisti por diversas vezes, porém em vão. Ninguém mais me informou o paradeiro dele. Posso afirmar, categoricamente, que no estado físico em que o vi, ele não tinha condições nem de matar uma mosca, quanto mais fugir ou tomar qualquer outra atitude. Eles mataram o meu querido Quias…”

No dia 12 de março de 1972, a Delegacia de Polícia do município de Escada/PE, encontrou, na barragem do rio Bambu, o corpo de um homem jovem com sinais de tortura, com pés e mãos amarrados, e o encaminhou ao Instituto de Medicina Legal de Recife.

O caso foi noticiado nos jornais e chegou ao conhecimento dos familiares de Ezequias, que foram imediatamente ao IML/PE. Apesar de insistirem, mostrando que as caraterísticas físicas do corpo relatadas na imprensa eram compatíveis com com as de Ezequias, que estava desaparecido há 48 horas, foram impedidos pelos agentes dos órgãos policiais de retirar ou ver o cadáver. Disseram que aquele corpo era de uma pessoa já identificada.

Mas a família nunca deixou de procurar e de ter esperanças. Em 1991, levaram o caso para ser apreciado pela Comissão de Pesquisa e Levantamento dos Mortos e Desaparecidos Políticos, em Pernambuco, que fez uma perícia datiloscópica para comparar as digitais constantes em documentos pessoais de Ezequias, com as impressões digitais constantes do laudo necroscópico da pessoa encontrada na cidade de Escada (PE). O resultado foi positivo, ou seja, aquele corpo, que estava no IML no dia 12 de março e que foi sonegado aos familiares era, de fato, o de Ezequias. A mesma equipe teve acesso à descrição das lesões causadas por torturas praticadas contra Ezequias ainda em vida o que, portanto, desmontou a falsa versão de fuga produzida pelos órgãos estatais.

Um dos chefes do DOI/CODI do IV Exército, o coronel Confúcio, teria dito a um conhecido, em 15 de março de 1998, sobre a morte do casal Luís Alberto e Miriam Lopes:18 “é verdade, nós acabamos com eles”. Esse mesmo coronel Confúcio Danton foi auxiliar direto do general Vicente de Paula Dale Coutinho, que registrou elogios no prontuário de Confúcio, com destaque para sua atuação à frente da repressão no Nordeste, e o promoveu, em 1973, ao posto de general.

Apesar de descobrir a verdade sobre a morte de Ezequias, a família nunca conseguiu localizar o seu corpo. As pessoas enterradas como indigentes na cidade de Recife e na grande maioria das cidades brasileiras têm seus corpos descartados ou eliminados após 03 anos de sepultamento, em flagrante ofensa ao princípio da dignidade humana. Essa situação persiste nos dias de hoje e faz com que continue sendo muito fácil fazer um corpo desaparecer quando a pessoa é enterrada em um cemitério público, sem o conhecimento de seus familiares, por qualquer motivo. E não há nenhuma lei federal que discipline a questão nacionalmente, pois o assunto ainda é comodamente tratado como um tema de interesse apenas local.

Tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, há ruas nomeadas em homenagem a Ezequias.

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Este texto faz parte da campanha de divulgação da II Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado e pela Democracia que será realizada em São Paulo/SP, no dia 29/03/2020, no Parque do Ibirapuera.

Autoria: Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora regional da República, mestre em Direito Constitucional e coautora das primeiras iniciativas de responsabilização de agentes da ditadura.

Fonte: Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Volume III, páginas 898 a 903.

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