Quando Reneu Mertz foi preso em 1970 na cidade de Três Passos, possuía 29 anos, esposa com 26 anos, três filhas: Harla Siegrid, 6 anos, Andrea, 2 anos e a recém nascida Nice Lara com dois meses.
Era o filho mais velho, a referência, de uma família que perdera a mãe precocemente, tinha os irmãos, Lorivaldo, Silma Delci, Ilse Edith, Aracy Ivoni, Marli Marlene e Lori Hildegard. Havia um pai, Selvino Teutonio, para quem, após muito esforço, o anistiado representava o orgulho de ter um filho Doutor.
Todos esses familiares eram de alguma forma amparados pelo esposo, pai, irmão e filho.
Exercia mandato de vereador, tendo sido eleito em 1968 pelo MDB.
Era profissional liberal, cirurgião dentista. Tinha tamanho reconhecimento profissional que atuava inclusive em carreira internacional, integrando o Circulo Odontológico de Misiones, Argentina.
Sua filha, Clarissa, nascida após a prisão, conta:
“Não existem palavras que possam externar a dor e o sofrimento de quem sofreu as torturas do cárcere, tampouco dos familiares que se tornaram igualmente cativos, reféns do medo, da tristeza, das privações, das ameaças e das torturas psicológicas sofridas.
A prisão de meu pai, Reneu Metz, retirou do convívio social o vereador mais votado da história de Três Passos, cuja votação, 12℅ dos votos, dificilmente será alcançada. A oposição ao regime que o perseguia e ameaçava resultou na prisão de um cidadão comprometido com o bem estar de sua comunidade.
O sucesso eleitoral do jovem do MDB não se atribuía somente ao fato de ter carisma e ideais políticos, devia-se sobretudo à brilhante carreira como cirurgião dentista, pois o Dr. Reneu atendia a todos, sem distinção.
A prisão retirou do lar um pai de família amado e querido, que com seu trabalho garantia de forma satisfatória o sustento de todos. Retirou um irmão, um filho, que era referência e amparo para todos.
O irmão Lorivaldo Mertz e o tio Asildo Schuster chegaram a ser igualmente presos para “averiguação”. Todos os parentes tinham as casas invadidas e reviradas, os tios, o pai e os irmãos foram vigiados, ameaçados e torturados psicologicamente.
As noticias dos jornais tratavam de massacrar o amor familiar já suficientemente abalado, tornando a tristeza e as humilhações ainda maiores ao publicar, em matéria de capa, que:
Os participantes do movimento terrorista não pensaram em suas famílias, em seus amigos e nem na comunidade que enganaram com suas atitudes de ovelhas, escondendo, contudo, lobos ferozes. Não estavam a serviço de sua pátria.
A prisão deixou desamparadas uma jovem esposa e suas três filhas. A família vivia exclusivamente do trabalho do anistiado, sem possuir qualquer bem passível de gerar renda, passaram a viver de empréstimos, favores e da generosidade de amigos.
Para relatar parte da dor e do sofrimento gerados, nada melhor do que as palavras da esposa ao marido, e do dele para a família, em cartas da época. Seguem algumas transcrições, de cartas que chegaram ao seu destino, a primeira serve para mostrar que cartas eram também interceptadas:
Três Passos, 10-11-70
“Para mim é mais difícil escrever agora sabendo que talvez nem recebas minha carta. Quero ver se envio esta por alguém que vá a Sta Maria”
Três Passos 3-1-71
“Para mim também todos os dias são iguais, nenhum menos longo ou menos triste. Enganas-te muito se achas ou queres que não me lembre de ti por uma hora siquer. Às vezes bem que quisera esquecer tudo, mas não depende da minha vontade. Tudo me faz lembrar de ti e assim do nosso drama. Sinto-me tão inútil em não poder te ajudar, te aliviar desta amargura, deste sofrimento em que te encontras…
Querido, perdão por não escrever mais vezes mas é que quase sempre ando tão desanimada e desesperada que tenho medo de te deixar mais amargurado ainda. Mas vou ver se deixo o pessimismo de lado e escrever mais vezes nem que seja para fazer conversa fiada.”
Três Passos 14-2-71
“Passo os dias pensando no que te escrever, procurando a melhor maneira de confortar. Mas é tão difícil, quase impossível. Depois de muito lutar consigo reagir e achar uma ou outra forma de aliviar, por poucas horas que sejam, um pouco da tua dor. É o que penso e também sempre me dizes.
O que me anima é a alegria que noto quando recebes uma carta minha e também o amor, o carinho que transmites em tuas cartas. Também sempre encontro um consôlo e conforto em nossos filhos e nos inúmeros amigos. Nem quero pensar no que já teria feito se não fossem eles.”
Três Passos 29-3-71
“Se eu pudesse riscaria o dia de amanhã da face da terra. Creio que nunca mais esqueceremos êste dia. Êste e um outro que em breve virá se juntar a êle. Um será lembrado com tristeza e outro com uma felicidade imensa.
Passou um ano. O mais longo de todos os nãos já passados. Foi horrível mas passou. Ficou para trás por isso vamos tentar esquecê-lo.”
Há ainda cartas do preso para a família:
Sta. Maria, 11/10/70
“Para mim sempre foi desagradável escrever e agora o é mais ainda, porque o faço tomado pelo desanimo que em mim reina, desanimo consequente deste véu negro colocado entre nossas vidas para separar a felicidade nossa e de nossos filhos. Amanhã, dia das crianças e com a mente voltada prar as nossas filhas que me animei a escrever e o faço contendo os espasmos na garganta e com os olhos marejados em não poder abraçar minhas queridas filhas que tanto quero. É por isso que hoje escrevo, nas também por isto que choro e choro de amor por vocês e por estar longe de quem tanta falta sinto. Sei que também sofres, talvez mais que eu, sei também que agora só existem tristezas em substituição aos nossos momentos de felicidade.”
Santa Maria, 21/2/71
“Se até agora tenho sido egoísta e cego chegou a hora de enxergar nitidamente as qualidades que possuis. As descobertas já não são surpresas e diariamente se confirmam a preocupação e dedicação que tens por mim. Assim, hoje confesso humildemente só encontrar conforto em tua pessoa e minha dor sente-se aliviada quando recebo carta que só tu sabes escrever. E esta última, uma verdadeira obra de arte, uma beleza em suas palavras fazendo um conteúdo em forma de poema cheio de amor, ternura e dor. Destaca-se teu sofrimento que já não é suportável para nós, e é por isto que chorei ao ler tua carta, chorei por não suportar tua dor que nada mais é do que fruto do nosso amor. Derramo lagrimas para aliviar o pesar acumulado em mim através da melancolia e da tristeza que há tanto tempo em mim moram…
Não posso me conformar; e quanto ao tempo passado preso aí, não vem a ser motivo para o julgamento sair somente em julho.
Se tanto tenho sofrido, se fui vitima de humilhações e outros atos que deprimem minha vontade e se mesmo assim consegui resistir suportando esta dor, não hei de desanimar agora. Reconheço que seria mais fácil para mim enfrentar a situação se não houvesse em minha vida esposa e filhas. Vocês significam tudo para mim, vida, amor, consôlo, e é por isto que sofro mais por notar que vocês também sofrem…”
Desnecessário transcrever outros trechos, entendo perfeitamente comprovado parte do sofrimento de uma família. Em anexo ainda cartas da pequena filha Harla, em início de alfabetização, atitude que por si só dispensa comentários.
Hoje sabe-se que em maio de 1970, quando ainda encontrava-se preso em Três Passos, deslocaram-se para a cidade, sob a coordenação do Coronel Paulo Malhães, agentes do DOI/CODI e do DOPS, pois eram mais “habilidosos” nos interrogatórios, e aplicaram nos presos todas suas técnicas de tortura, interrogatório e guerra psicológica.
Este e outros acontecimentos fizeram com que o jovem vereador, libertado após ser julgado inocente, deixasse a prisão cerca de 20 quilos mais magro, surdo de um ouvido, hipertenso e traumatizado.
Morreu em 1991, com a voz embargada, um nó na garganta, um aperto no peito, o trauma oriundo das torturas sofridas no cárcere deixou tamanhas sequelas que o anistiado não conseguia falar sobre o assunto.
A hipertensão e outros transtornos adquiridos na época em que esteve preso lhe causaram a morte, de forma precoce aos 50 anos, sem que o mesmo pudesse dizer publicamente “lutei pelo direitos mais básicos dos cidadãos brasileiros e me opus e ofereci resistência à ditadura, ao regime militar”.
Hoje os tempos são outros, das feridas o sangue já não jorra mais, restaram, porém profundas cicatrizes.
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É emocionante para alguém que vivenciou o drama deste herói chamado Reneu Mertz,estou feliz por saber noticia deste personagem admirado por todos aqueles que o conheceram ou ouviram falar do mesmo,estou triste por saber que este grande amigo do velho MDB o qual fundamos na época ,não está entre nos,porém vai aqui minhas tristezas para esta família de heroica resistência pois espero que tenham sempre a fé para suportar as vicissitudes do porvir,pois vos como eu também guardo a dor de ver o Brasil como poder ,nada fazendo no sentido de reavaliar,os atos que os arbitrários chamaram de defesa da democracia porém eu os chamo de covardia fascista,uma vez que também perdi um irmão morto pelas atrocidades cometidas pelos mesmos terroristas que governaram nossa pátria.