Era a noite de Sexta-Feira da Paixão de 1968. O jornalista e escritor carioca Arthur Poerner, que já havia sido preso pelo regime militar, hospedava em casa, no Jardim Botânico, o amigo uruguaio Eduardo Galeano, que colhia informações para o livro “As veias abertas da América Latina”, que se tornaria um clássico quando publicado, três anos depois. Galeano pediu para Poerner levá-lo a um terreiro de quimbanda que funcionava no Morro do Sossego, ali perto.
Voltaram de lá tão impressionados “com o que havia de protesto anárquico no ritual”, especialmente com a figura de um preto velho, o Vovô Catirino, lembra Poerner, que chegou em casa e escreveu um poema sobre o episódio, “Morro do Sossego” (Galeano também relataria o que viu em 1978, no livro “Dias e noites de amor e guerra”). O poema ficou na gaveta por dois anos, até o dia em que um novo amigo, Antonio Candeia Filho, o Candeia — sambista que surgia com força impressionante na Portela — convidou Poerner para uma parceria musical. O jornalista entregou o mote guardado ao sambista: “Ó Catirino menino, pombo que escapa ao morcego/ seu sangue quer preservar/ Ó, Catirino inquilino, sossega lá no Sossego…”
— Quando leu o poema, Candeia quis musicá-lo. Ele era, também, à sua maneira, um contestador do sistema e da opressão, profundamente engajado na luta pela pureza do samba e contra a discriminação racial e social, duas das muitas causas pelas quais se batia. No fim daquele ano, eu já estava exilado na Alemanha, e ele me escreveu, informando que o conjunto Nosso Samba gravaria a composição “em janeiro, o mais tardar”, e que a Clara Nunes “já a cantarolava”. Mandou até uma fita K7 com uma gravação caseira, que guardo até hoje. Eu nunca soube da censura. Nem os meus prontuários no Dops e no SNI se referiam ao fato — detalha o jornalista, aos 76 anos, autor de “O poder jovem”, de 1968, best-seller sobre a história do movimento estudantil brasileiro, dos primeiros livros a serem recolhidos pós-AI-5.
A confirmação só aconteceu agora: a letra fora de fato vetada, e de acordo com o parecer dos censores, dado no dia 26 de maio de 1971, “por incentivar a luta de classes”.
Mariana Filgueiras
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