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Carmela Pezzuti: a mãe que virou guerrilheira

A mãe, de Máximo Gorki é um romance que conta a história de Peláguea Nilovna, que após enviuvar-se passou a acompanhar a mudança de comportamento do filho. Em tempos de repressão, o jovem tornava-se um rebelde, lendo livros proibidos e envolto a discussões políticas. Rapidamente o engajamento do filho virou o engajamento da mãe. Mesmo após a prisão do filho, ela, agora uma militante exemplar, continuava na luta, em meio a disfarces e infiltração em fábricas.

A história de Carmela Pezzuti confundiu-se, de certa forma, com a da personagem russa.

Divorciou-se aos 37 anos por incentivo dos filhos Ângelo e Murilo. Sem algum auxílio do ex-marido, teve que começar a trabalhar. Tentou ser vendedora de livros, depois vendeu máquinas de lavar, mas por intermédio de um cunhado acabou como secretária no gabinete do governador mineiro Israel Pinheiro. Envolveu-se com um deputado conservador ao mesmo tempo em que se engajara na organização de guerrilha Comandos de Libertação Nacional.

Nascida em Araxá em 1926, sua entrada para a militância ocorreu quando tinha quase 40 anos. Foi levada pelos filhos, ambos integrantes do grupo COLINA.

Em fins dos anos 1960, Murilo era estudante secundarista e Ângelo estudante de Medicina na UFMG. Carmela começou a observar a mudança no comportamento dos filhos. Eles chegavam em casa junto com os amigos e se trancavam no quarto. Ela levava lanche para o grupo e eles mudavam o assunto quando ela entrava.

Após muita insistência de Maria Auxiliadora Barcelos, a Dodora, também estudante de medicina, os filhos de Carmela resolveram chamar a mãe para a militância:

“Um dia, o Ângelo e o Murilo chegaram para mim e já foram de supetão: Nós somos comunistas. Levei o maior susto! Porque comunista, naquela época, comia criancinha. Eu falei: Nossa meu filho, não é possível! Ângelo disse: Vamos, entra conosco. Você acredita que eu entrei? Entrei, mas entrei dando uma cobertura”.

Por intermédio de Dodora, começou a ler Regis Debray, Che Guevara e demais clássicos da esquerda. Ângelo deu de presente o livro do Gorki. Na organização, junto com a Dodora ela abriu uma loja de bijuteria para arrecadar fundos, depois começou a fazer documentos falsos. Isso ao mesmo tempo em que trabalhava no Palácio.

A determinação de Carmela em militar chamava a atenção dos demais integrantes do grupo. Segundo Irani Campos:

“A disposição, a coragem que a Carmela Pezzuti tinha de ser guerrilheira, aquilo era uma fortaleza para a gente. Além dela ser mais velha. Tinha menos prática, menos vivência, por exemplo, de andar no mato, subir montanha com mochila (para fazer treinamento guerrilheiro). Era difícil. A gente ia na Serra do Curral subindo e ficava admirado com o esforço da Carmela”.

No dia em que os filhos e os demais companheiros da organização foram presos em uma casa que servia de “aparelho”, ela recebeu a notícia no trabalho, na sede do governo do Estado. Naquele momento ela percebeu que seria melhor e mais seguro entrar para a clandestinidade, no entanto, ela já estava sendo perseguida e poucos dias após o episódio da prisão dos filhos ela foi presa, em 1969.

Inicialmente foi levada ao presídio feminino ainda em Belo Horizonte. Lá ficou 75 dias na cela “surda”, uma cela pequena, silenciosa e incomunicável. Ficava boa parte do tempo deitada, pois a cela tinha o teto baixo. De iluminação, somente uma claraboia.

De tempos em tempos era chamada para interrogatório com o coronel Otávio Medeiros, que um dia, cansado de não conseguir informações, disse: “Você vai ficar na surda até você me chamar e me contar o que você viu”. Ao que ela pensou: “Meu Deus do céu, eu vou ficar presa o resto da vida, porque eu voltar pra falar pra ele, não vou. Eu não apanhei muito ainda, então dá para eu ficar ali naquela cela”.

Depois foi transferida para a penitenciária de Linhares, por falta de provas contra ela, ficou em liberdade condicional. Fora da prisão resolveu continuar na militância clandestina mais uma vez:

“Não podia sair daqui. Aí, eu falei: Gente, eu vou ficar aqui, sem fazer nada? Vou continuar a luta. Não sei o que me deu. Deixar meus filhos presos para continuar a luta no Rio”.

Lá no Rio de Janeiro foi presa novamente, sob o nome  de Virgínia. Entraram na casa em que ela estava já atirando. Foi levada para o DOI-CODI. Foi torturada e depois levada para Juiz de Fora, mas para outro presídio, que não Linhares. Ao saber da volta da mãe, Ângelo retomou contato:

“O Ângelo era muito expansivo e o Murilo era mais calado. Quando eu cheguei em Linhares, o Ângelo escreveu um bilhete e pediu para mandar para mim. “Mãe, você é uma heroína”.

Em 1970, juntamente com mais 69 prisioneiros, foi trocada pelo Embaixador Suíço Enrico Bucher. Seu primeiro destino foi o Chile, onde reencontrou Ângelo. Com o golpe contra o presidente Allende, em 1973, foi para a Itália. Pôde reencontrar Murilo.

Representou o Brasil no Tribunal Bertrand Russel, que condenava crimes de guerra e a ação dos EUA em golpes militares e financiamento de torturas, em depoimento muito ovacionado.

Perdeu o filho mais velho na França, em acidente de motocicleta, em 1975. Quando foi anistiada, em 1979, voltou e recomeçou a vida no Brasil.

Engajou-se na Associação de Apoio a Creches Comunitárias, chamada Casa da Vovó, que teve como base sua experiência como babá, na Itália. Em 1984 foi ao Mato Grosso ajudar Murilo Silva, na Associação de Apoio às Comunidades Carentes daquele estado. Muito deprimido, ele suicidou.

Carmela morreu em 2009, aos 82 anos.

Ironicamente, após passar boa parte da vida militante tentando esquecer informações para não entregar nenhum companheiro, passou os últimos anos diagnosticada com mal de Alzheimer.

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