Como “caiu” o campo de treinamento de Lamarca?
MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA FOLHA
Vinte e quatro anos depois, a Guerrilha do Vale do Ribeira ainda provoca ressentimentos; talvez por conter alguns pontos obscuros. Existem versões das muitas biografias publicadas sobre a época, como “Lamarca, O Capitão da Guerrilha”, de Emiliano José e Oldack Miranda, livro que serviu de base para o filme “Lamarca”, e existe a versão da Polícia Militar, num vídeo recém-produzido pelo seu Centro de Informações.
Um dos pontos obscuros é quem delatou para a polícia a área de treinamento da guerrilha.
Afirmei, num artigo publicado pela Folha no último dia 16, que “depois da delação de Celso Lungaretti, um ex-guerrilheiro que conhecia bem a área, uma vasta operação militar… cerca a área”. A jornalista Judith Patarra, no seu livro “Iara”, escreveu: “Lungaretti revelou a área”. No entanto, o ex-guerrilheiro, em carta publicada na “Ilustrada” da última quarta, contesta a informação.
Não estou nem nunca estive envolvido num complô para “acirrar a ira dos autoritários de esquerda” contra Lungaretti e procuro escrever sobre os acontecimentos ocorridos em 1970 no Vale do Ribeira com a isenção de um pesquisador; Patarra não foi guerrilheira e escreveu o livro, um dos melhores documentos sobre a época, depois de colher depoimentos de diversos guerrilheiros e sobreviventes da Guerrilha do Vale, entre eles Darci Rodrigues e Mário Japa.
Lungaretti afirma, em sua resposta, que pode “ter sido responsável involuntário pelo episódio, mas não o delator que Marcelo Paiva pinta”.
Segundo o Aurélio, delatar é “denunciar, apontar, revelar, deixar perceber, evidenciar”. Circunstâncias desumanas, no caso, “a intensa tortura”, levaram Lungaretti a, como ele mesmo diz, “contar” à polícia o terreno desativado em que os guerrilheiros treinavam, próximo, sem ele saber, do terreno verdadeiro. Lungaretti, então, apontou, deixou perceber, enfim, delatou.
Em fevereiro de 70, Mário Japa, codinome de Shizuo Osawa, membro da Coordenação Regional da VPR, capotou seu carro e desmaiou. A polícia encontrou no carro documentos e mapas que indicavam que a VPR tinha um campo de treinamento de guerrilha.
Preso e torturado pelo ex-delegado Fleury, Mário conseguiu despistar ao afirmar que a área seria na Ilha do Bananal (GO), quando o sítio situado no Vale do Ribeira se chamava Bananal. Desde então, a OBAN (Organização Bandeirantes, que servia de apoio ao combate à guerrilha) sabia que Lamarca comandava um campo de treinamento de guerrilha. Só não sabia onde.
A VPR, junto com outras organizações, preocupada com a segurança do campo, chegou a sequestrar, no dia 10 de março, o cônsul japonês de São Paulo, para tirar Mário da prisão. O guerrilheiro, trocado pelo cônsul, partiu para o México, de onde conseguiu enviar informações de que não denunciara, apesar da tortura, a área exata do campo, evitando que o mesmo fosse desmobilizado.
Já Lungaretti, na prisão, revelou o antigo terreno, na região de Jacupiranga, e o homem de ligação com os guerrilheiros, Maneco de Lima, ex-prefeito da cidade.
Dia 18 de abril, após “tomar” Jacupiranga, prender e torturar mais de 20 moradores, entre eles o corretor de terras Elpídio Pinto, o professor Bonadia, o advogado Pinto Ribas, o farmacêutico Guerra, o administrador de fazendas Frauzino e o ex-prefeito Maneco de Lima, proprietário do sítio de 80 alqueires onde se instalou o campo de treinamento, não foi difícil para o Exército localizar a área: Capelinha, numa região serrana a 39 km de Jacupiranga.
O ex-sargento Marival Chaves, que trabalhou 17 anos como especialista em análise de informação no DOI-Codi e no Centro de Informações do Exército, em entrevista por telefone à Folha, de Vitória (ES), confirma que “Lungaretti foi quem abriu a área de existência no Ribeira”.
“Sei da participação através de documentos internos, informes, depoimentos que analisei. Que foi ele o delator da área, não tenho dúvida… Delatou ou comentou sobre a existência da área de treinamento de guerrilha na região do Vale do Ribeira.”
Durante a entrevista, Chaves, um dos primeiros ex-agentes a descrever os bastidores dos órgãos de informação do Exército, se surpreende: “O Celso (sic) foi preso no Rio, levado para São Paulo e depois para a área, para mostrar a área. Fica difícil ele negar a evidência.”
Lungaretti pede, em sua carta dirigida à Folha, que as velhas feridas não sejam “sadicamente” mexidas. Peço desculpas a ele e agradeço o fato de, na contestação, ter clareado pontos obscuros. Não procuro julgá-lo, nem discutir os efeitos terríveis da tortura sobre um preso. Lamento saber que, até hoje, ele sofre em função da violência cometida na prisão.
Cedo ou tarde, independentemente de Lungaretti, a área do campo de treinamento seria descoberta. Não discuto se era loucura ou ingenuidade da VPR e de seu comandante, Carlos Lamarca, montar uma base de treinamento a menos de 200 km de São Paulo.
Também não discuto a validade da luta armada. Em memória dos milhares de torturados, desaparecidos e mortos pelo regime militar, procuro, apenas, lembrar este período, sem ressentimento, apesar de, como Lungaretti, ter todos os motivos para tê-lo.
Do Vale do Jucupiranga ao Vale do Ribeira
Delatada por Massafuni(1N) e Lungareti (2N), a área de treinamento de guerrilha da VPR sofreu ataque das forças armadas a partir de 21 de abril, enquanto os agentes do Dops e Oban já estavam em Jacupiranga desde o dia 19.
Dividimo-nos em dois grupos para evacuação da área; um dos grupos acompanhou os movimentos das tropas do Exército de 14h 45min do dia 21 até a´17h do dia 22, quando iniciou a marcha para o vale do Ribeira.
As forças armadas atuaram com helicópteros, aviões caças e bombardeios, tropas a pé e motorizada, patrulhas fluviais, além de agentes à paisana, num total de cerca de 20 mil homens.
Antes de iniciarmos a marcha, perdemos dois companheiros que caíram numa emboscada, quando iam ocupar um posto de observação – eram os combatentes Darcy Rodrigues e José Lavecchia, que sofreram as mais vis torturas em Registro e em São Paulo.
Diante da incapacidade das forças armadas, lenta e tranqüilamente atravessamos a serra e atingimos o vale do Ribeira, na localidade de nome Barra do Areado, onde o rio deste nome encontra o rio Batatais que é afluente do rio Ribeira. Era 8 de maio quando chegamos, ali deixamos os equipamentos e vestimos roupas comuns – conversamos apenas o armamento e a munição. Alugamos um caminhão para nos transportar a Eldorado Paulista.
Chegamos a Eldorado às 19 horas do dia 8 de maio. Ali existia um bloqueio da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que atacamos, derrubando cerca de 6 policiais e pondo a correr os demais – tudo presenciado pela população local. Os mortos naquele combate não tiveram seus nomes anunciados na imprensa, nem houve exploração sentimental nos seus enterros – as forças armadas consideraram aquela derrota uma vergonha que não podia ser declarada.
Tomamos rumo a Sete Barras, esperávamos o encontro com as forças repressoras no caminho. Isto se deu às 21 horas, o pelotão inimigo era composto de 17 homens (1 tenente, 2 sargentos, 2 cabos e 12 soldados). Éramos 7 num caminhão. O inimigo vinha com uma caminhonete e uma viatura militar. Dru um combate de encontro, e não uma emboscada; num rápido envolvimento cercamos o inimigo. Houve um tiroteio intenso, nos seus intervalos os gritos dos inimigos feridos prenunciavam a derrota iminente. Após cinco minutos exigimos a rendição, que foi aceita incontinente, sem exigências. O herói que querem fazer do tenente Mendes, não existiu – para restabelecer a verdade, só um inimigo avançou, foi o sargento Lino, que caiu ferido com três tiros, e só um soldado fugiu para Sete Barras.
Nós, revolucionários, cuidamos dos feridos, explicamos a nossa luta aos soldados, expropriamos três metralhadoras, um fuzil e munição.
Decidimos libertar os prisioneiros sob a condição de ser levantado o bloqueio. Conduzimos o tenente Mendes e os feridos até junto à tropa que bloqueava Sete Barras. O tenente Mendes declarou que estava suspenso o bloqueio. Libertamos os prisioneiros e conduzimos conosco o tenente na direção de Sete Barras. Ali constamos que o bloqueio não havia sido levantado – havia uma emboscada. Desbordamos a emboscada – o inimigo percebeu e , utilizando-se dos faróis de suas viaturas, tentava nos localizar no matagal, e executava milhares de tiros a esmo. Naquela ocasião, a tropa inimiga que vinha pela estrada, na mesma direção que vínhamos antes, caiu na emboscada que havia sido montada para nós. Enquanto isto, nos afastamos, conduzindo o tenente preso. Ali os companheiros José Nóbrega e Edmauro Guerra se perderam, na escuridão, foram presos dias depois e selvagemente torturados. Marchamos dois dias e duas noites sem dormir, o tenente não agüentava mais andar, por isso paramos (dia 10 de maio). Fizemos várias perguntas ao tenente; ele considerava a derrota como culpa dos soldados, que usavam a farda como meio de vida, que não tinham amor à farda – sobre o seu procedimento no tempo em que serviu no Presídio Tiradentes, declarou que os presos não são gente – sobre a emboscada que montara, quebrando a palavra empenhada, dizia-se traído pelos seus superiores – perguntado por que a Polícia Militar espancava operários e massacrou operários na greve de Osasco, respondeu que grevistas e desempregados são vagabundos, e não respondeu quando perguntamos sobre a miséria que tinha visto no campo, e particularmente no nordeste.
Foi julgado e condenado por ser um repressor consciente, que odiava a classe operária – por ter conduzido à luta seus subordinados que não tinham consciência do que faziam, iludidos em seus idealismos de jovens, utilizados como instrumento de opressão contra o seu próprio povo, iludindo os jovens, ensinando-os a amar a farda, quando deveriam amar o povo – por ter rompido com a palavra empenhada em presença de seus subordinados – por ter tentado denunciar a nossa posição.
A sentença de morte de um Tribunal Revolucionário deve ser cumprida por fuzilamento. No entanto, nos encontrávamos próximo ao inimigo, dentro de um cerco que pode ser executado em virtude da existência de muitas estradas na região. O tenente Mendes foi condenado a morrer à coronhadas de fuzil, e assim o foi, sendo depois enterrado. Não sofreu qualquer violência ou ameaça antes do justiçamento, nem teve as mãos amarradas.
Depois de ser preso em São Paulo e ser violentamente torturado durante 15 dias, o companheiro Ariston – filho de Antônio Raimundo de Lucena – conduziu a Polícia Militar ao local do justiçamento. Consta que Ariston esteja aleijado, e ao mesmo tempo em que a repressão fazia o enterro do tenente, torturava Ariston.
Do dia 10 ao dia 18 de maio controlamos os deslocamentos da tropa que vasculhava a região de Areado (próximo a Sete Barras), Assistíamos os roubos que a tropa fazia nas plantações, e as humilhações por que passavam os trabalhadores da região.
Continuamos a marcha no dia 19, driblando facilmente as tropas do exército, que demonstrou capacidade, apenas, de aterrorizar a população. No dia 22 de maio o exército aprisionou dois camponeses, que foram fazer compras para nós, torturou-os e matou-os, e para justificar estes crimes, passaram com uma viatura sobre os cadáveres mutilados, para dar a impressão de que tinham sido acidentalmente atropelados.
Temendo que a população nos apoiasse, passaram a bombardear e queimar com napalm grandes regiões, aterrorizando assim a população que passou a abandonar a área. Vôos rasantes foram executados sobre míseras choupanas, e o matraquear das metralhadoras eram constantes. Afastamo-nos da região, evitando o combate, para a população não sofrer represálias.
Ultrapassamos os diversos cercos até o dia 29, no dia 31 montamos uma emboscada e aprisionamos um sargento e quatro soldados do exército, que se deslocavam numa viatura. Vestimos os seus uniformes e nos deslocamos com a viatura para São Miguel Arcanjo, onde havia um bloqueio que foi ultrapassado. Chegamos a São Paulo, sem dificuldades, às 21 hora, e abandonamos os militares amarrados dentro da viatura.
As forças armadas têm à sua disposição toda imprensa que é dominada pelos americanos, e mantém diariamente para enganar o povo. Falam em segurança, mas não conseguem fazer a própria segurança – já mataram 18 pessoas que passavam em frente aos seus quartéis. Falam na Pátria e a entregam aos americanos. Conduzem para a luta os soldados, iludindo nossos jovens filhos de trabalhadores, fazendo-os de escudo dos oficiais traidores da Pátria, inimigos da classe operária. Fazem propaganda, enquanto gastam 40% da renda nacional, e enriquecem com o sofrimento do povo.
Em nossa Pátria os parasitas é que têm valor: um policial ganha cinco vezes mais que um operário, um cabo das Forças Armadas ganha três vezes mais que uma professora, um oficial inculto ganha mais que um médico, qualquer general idiota ganha mais que um cientista – a injustiça impera em nossa Pátria.
Somente pela luta armada modificaremos isto, fazendo com que as fábricas sejam dirigidas pelos operários, que a produção da lavoura seja de quem trabalha na terra e não aos donos de títulos de propriedade.
Iniciamos o processo de união das organizações revolucionárias, e a união com o povo também está em marcha. Com o povo faremos a revolução que criará um Brasil justo.
OUSAR LUTAR – OUSAR VENCER
Vanguarda Popular Revolucionária – VPR
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