Quando a estudante Izabel Dedavid Fávero começou a militar por qualidade no ensino público de Caxias do Sul, não imaginava as consequências que essa luta reservava. A repressão aos movimentos sociais desencadeou uma série de acontecimentos e determinou os rumos de Izabel. Hoje com 64 anos, Izabel foi presa, torturada e precisou construir a trajetória longe do país, ao lado do marido, Luiz Andrea Fávero.
Izabel cursou magistério na Escola Normal Duque de Caxias, junto ao Cristóvão de Mendoza. A forte atuação do grêmio estudantil despertou a jovem normalista. Foi na militância que conheceu Luiz Andrea, então presidente da União Caxiense de Estudantes Secundaristas (Uces). Não demorou para que os jovens idealistas engatassem namoro. A luta inicial era por melhores condições de ensino gratuito. Mas foram poucos meses de política estudantil, já que a situação ficava cada vez mais violenta.
“Foi a ditadura que criou a nossa resistência, na medida que ela acirrou a repressão contra a nossa liberdade de expressão. A gente saía à rua numa passeata reivindicando qualidade de ensino, a nossa pauta era direcionada a nós mesmos. À medida que a nossa liberdade foi sendo tolhida, a gente começou a olhar não só pelos nossos interesses, mas também para a sociedade, para as condições em que o Brasil estava sendo construído”, relatou Izabel ao Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
Aliados a militantes contemporâneos, como Airton Michelli e Airton Frigeri, Izabel e Fávero ingressaram em 1969 na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR Palmares), organização de esquerda que combatia os militares. A VAR Palmares teve vida curta em Caxias. A direção regional do grupo entendeu que não era interessante atuar na cidade devido à visibilidade da política estudantil. O casal mudou-se para Nova Aurora (PR), onde os pais de Fávero tinham sítio. O objetivo era fundar um núcleo da VAR Palmares naquela região do Paraná, o que acabou não acontecendo, porque o casal ficou geograficamente isolado. Apesar da falta de apoio da organização, o trabalho de conscientização de Izabel e Fávero não foi comprometido.
Hoje ela considera positivo não ter recebido recursos financeiros da VAR, já que isso obrigou ambos a saírem da clandestinidade. Izabel começou a lecionar português e francês, inicialmente em um colégio da cidade paranaense. Tempos depois, o casal reabriu uma escola abandonada no interior. Fávero se revelou excelente professor e os dois passaram a alfabetizar adultos também.
“Nós éramos um jovem casal começando a vida. A nossa presença ali não levantava nenhuma suspeita, encontramos uma receptividade incrível nessas famílias. Ao tempo que organizávamos a resistência armada, fazíamos um trabalho de educação, um trabalho político de mudança de paradigma, de cultura”, recorda.
A atuação durou até o dia em que foram presos, na madrugada de 5 de maio de 1970 (na foto acima, o casal está ao centro). No mesmo dia, tinham ido ao médico. Izabel descobrira estar grávida. Poucas horas depois, o sítio estava emboscado. A vizinhança não entendeu por que um batalhão armado invadiu a cidade para prendê-los. A motivação veio da visita de um dirigente da VAR que fizera um relatório superdimensionando informações, dando a entender que os Fávero aliciavam os camponeses que frequentavam suas aulas.
“Os militares estavam assustados, porque ali dentro estava apenas eu e ele, mas imaginavam que poderia ter um monte de guerrilheiros que viessem nos resgatar”, conta Izabel.
Porém, apenas o jovem casal e os pais de Fávero estavam no sítio. Todos resultaram algemados. O casal de militantes começou a ser torturado ainda em casa.
“Eles caíram de sola, fazendo o que sabiam de melhor. Sabiam que éramos recém-casados, que a gente se amava, então nos torturavam um na frente do outro. O Luiz Andrea dizia: ‘Não batam nela, não a machuquem, ela está grávida’”.
O apelo foi em vão. Levados a Foz do Iguaçu (PR), permaneceram presos e vieram mais torturas.
“Choques elétricos, beliscão com choques elétricos nas genitálias, no seio, nas orelhas, beliscão com alicates. Botavam meus pés em uma bacia com água e me davam choque. Me torturavam muitas vezes sem fazer pergunta nenhuma”, relata.
Após três dias contínuos de tortura, Izabel sofreu o aborto do filho que estava esperando.
Dois anos mais tarde, Izabel e Fávero se refugiaram no Chile, até o golpe de Estado naquele país, no ano seguinte. Sob o regime do ditador Augusto Pinochet, novamente foram perseguidos. O casal, então, encontrou refúgio até a anistia brasileira na França, onde permaneceu por 13 anos. Apesar de prudentes e precavidos, nunca abandonaram ideais e mantiveram a ideia fixa de voltar ao Brasil, o que ocorreu em 1983. Se instalaram em Pernambuco, onde Izabel vive até hoje.
Fávero morreu em janeiro de 2011, aos 67 anos, vítima de complicações durante uma cirurgia para retirada de um tumor. O depoimento de Izabel, que embasa a reportagem e permanecia inédito até agora, foi concedido ao setor Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami em 26 e 27 de setembro de 2013, quando ela esteve de passagem por Caxias.
Publicado no jornal O Pioneiro de Caxias
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