ciex Forças Armadas Operação Condor Repressão Torturadores VPR

MARIA MADALENA LACERDA E GILBERTO GIOVANNETTI, A HISTÓRIA DE UMA TRAIÇÃO

.Assim que eu voltei do exílio, assumi como missão descobrir o que havia acontecido com um pequeno grupo de companheiros da VPR, que retornou clandestinamente ao Brasil em 1974. Nas décadas de 80 e 90 eu cheio de pistas, mas nenhuma me levava a uma conclusão coerente. Cruzava as informações e elas não batiam.

Somente em 2004, ao descobrir o endereço de Madalena Lacerda e Gilberto Giovannetti e trocar alguns emails com Giovanetti é que comecei a amarrar as diversas pontas do novelo . Descobri então que o casal de traidores recebia salário para se infiltrar e informar ao Centro de Informações do Exército e que o controlador da dupla era o coronel Paulo Malhães, o “Pablo”, da Operação Condor. .

Abaixo, segue texto que eu extraí do livro “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?”, que relata minha pesquisa e descobertas e no final do texto o depoimento de Gilberto Giovaneetti para a CNV.

DURANTE MINHA PESQUISA nos arquivos da Polícia Federal e alguns outros arquivos públicos estaduais fiquei impressionado com a quantidade de informações que os serviços secretos da ditadura recebiam do exterior. Aproveitei então a estrutura da Delegacia de Foz do Iguaçu da Polícia Federal e descobri o endereço e o telefone de Madalena Lacerda, ex-militante da VPR, que após ter sido presa passou a trabalhar para a repressão.

Este caso ficou conhecido em 1992, quando o então deputado Luiz Eduardo Greenhalgh tornou pública a história de um casal de militantes de esquerda que havia passado para o lado da ditadura. Causou perplexidade a revelação do acordo que a militante da VPR Madalena Lacerda e seu companheiro, Gilberto Giovannetti, haviam feito com militares do Centro de Informação do Exército.

Madalena trabalhou no início da década de 60 como secretária da Frente Parlamentar Trabalhista. Em 1970 treinou guerrilhas em Cuba e foi companheira de Eudaldo Gomes da Silva, militante da VPR trocado pelo embaixador alemão e assassinado em janeiro de 1973 na emboscada montada pelo “cabo” Anselmo em Pernambuco. Madalena, que usava o nome de guerra de Ana Barreto Costa, retornou ao Brasil em 1970, após acertar durante sua passagem pela Argélia uma forma de fazer contato com Onofre Pinto, que havia conhecido em Cuba. Em janeiro de 1973 esteve no Chile, voltando lá em maio e junho do mesmo ano.

A 13 de julho de 1974, ao descerem na rodoviária de Curitiba, onde teriam um ponto com o sargento Alberi, Madalena e Gilberto foram presos e levados para um sítio no interior de Goiás e lá fizeram um pacto com os militares.

Já fazia algum tempo que a repressão havia descoberto que o uso da tortura para levar os presos a abjurar suas convicções era uma arma essencial

para o desmantelamento das organizações de esquerda. O acordo de Madalena Lacerda e Gilberto Giovannetti é mais um desses casos. Não foram os únicos. A lista de recrutados e infiltrados na história da esquerda brasileira é extensa. Os “cachorros” atuaram em todas as organizações que lutaram contra a ditadura.

Com a ajuda do Serviço de Informação da Polícia Federal, descobri o número do telefone e o e-mail do casal de professores, e no dia 16 de junho de 2003 enviei a seguinte mensagem para Madalena Lacerda.

De: Aluízio

Para: Madalena

Data: Segunda-Feira, Junho 16, 2003 7:58 PM Assunto: Questionamento

Cara senhora Madalena Lacerda,

Meu nome é Aluízio Palmar e moro em Foz do Iguaçu, Paraná.

Provavelmente a senhora me conheça ou então já ouviu falar de mim. Pois bem, desde que cheguei aqui  em  Foz  –  setembro  de  1979  –  venho trabalhando na reconstrução de algumas histórias (inclusive  a  minha).  Sei da intenção que a senhora e seu esposo têm de esclarecer, nos mínimos detalhes, algumas situações passadas. Que bom!

Por isso quero saber se vocês podem me ajudar a amarrar algumas pontas de um certo quebra-cabeça que me aflige até os dias de hoje. Caso positivo enviarei as perguntas por e mail.

Aguardo resposta

Aluízio Palmar

Esperei e, como até o dia 18 de junho não houve nenhuma resposta, telefonei para Madalena, e atendeu seu marido, Gilberto Giovannetti. Expliquei que há vários anos eu vinha procurando descobrir as circunstâncias da morte e o local onde foram enterrados os remanescentes da VPR que entraram no Brasil em 1974 liderados por Onofre Pinto. Gilberto me disse que Madalena não iria me atender, pois estava bastante magoada com a esquerda e pretendia não tocar mais nesse assunto. Porém, ele se comprometeu a me enviar um e-mail em resposta ao que eu havia remetido para eles. No dia 23 de julho recebi a primeira mensagem.

De: Gilberto Giovannetti Para: Aluízio Palmar Data: junho, 23, 2003

Assunto: R: Questionamento

Caro senhor Aluízio Palmar,

Meu nome o senhor certamente já conhece. Não me lembrava do seu. (Isto foi escrito antes de nossa conversa telefônica e resolvi manter). Sofremos por mais de uma vez as consequências de posturas irresponsáveis e oportunistas daqueles que um dia julgamos “companheiros”. Não contentes em jogar com a vida de terceiros ainda se arvoram ao direito de julgar sumariamente e lançar apressadas campanhas caluniosas contra pessoas que agiram com a máxima responsabilidade apesar das condições extremamente adversas provocadas pela irresponsabilidade e oportunismo citados. Me refiro aos fatos de 1974 e 1992 (artigo da revista Veja).

Diante do exposto, insisto, em meu nome e de minha companheira, em deixar claro que: Nos sentimos desobrigados de prestar esclarecimentos a questionamentos de quem quer que seja. Como qualquer cidadão só devemos satisfações – se solicitadas a serem manifestadas – perante a Lei.

– Pessoalmente, não “engolimos”, não aceitamos e não assumimos as infames acusações caluniosas sofridas. Pagamos, mais uma vez o preço – em prejuízos morais e materiais – e não temos porque buscar qualquer tipo de “reabilitação” (excrescência estalinista) junto aqueles em quem não reconhecemos liderança moral, intelectual ou política.

Portanto, que fique claro que não pretendemos estabelecer e manter relacionamentos baseados em posturas autoritárias e de dirigismo político- ideológico.  A experiência sofrida por nós e outros tem demonstrado ao longo do tempo o quanto tem sido nefastas e contrárias aos interesses maiores de sociedades democráticas, as tradicionais, caducas e odiosas práticas de grupos guetos ditos “revolucionários”.

– Quanto ao quebra-cabeça que o aflige, de fato, já manifestamos anteriormente por escrito, que pretendemos ajudar a esclarecer os episódios que nos “atropelam”. Penso que já contribuímos parcialmente – inclusive com exposição pública de nossas pessoas – com tal objetivo, já que até então estava tudo relacionado aos fatos, envolvido no mais profundo (e compreensível, diante da situação) “mistério”. No entanto nunca nos referimos a esclarecimentos “em mínimos detalhes”. Como é sabido foram episódios trágicos e que ocorreram em rigorosa clandestinidade (que, adianto, diante da debilidade e fragilidade da situação de todos os envolvidos, acabou sendo de grande valia para a repressão). Em nosso caso a clandestinidade se prolongou em situação adversa. Seria irresponsável e falso que os atores envolvidos, de ambos os lados, conhecessem detalhes em sua totalidade e minudências.

– Os esclarecimentos a que refiro servem, no máximo, para entender as práticas e mecanismos da repressão e mesmo suas contradições (além de formas de resistência, com as quais, na época, nem cogitávamos) e lançar pistas para uma compreensão geral daqueles acontecimentos e de sua evolução posterior. Não temos condições, nem a intenção, de nominar ou explicar o que não sabemos, não vimos  e  não  contribuímos  para ocorrer.

– Não contem conosco para a busca de “bodes expiatórios”. Alguns nomes, como o do antigo sargento gaúcho posteriormente assassinado aí em sua cidade, vieram à tona, inclusive em depoimentos de agentes divulgados pela imprensa. No entanto não tenho condições de afirmar se foi apenas algoz ou também vitima de posições insustentáveis.

– Nós reservamos o direito de não alimentar especulações que possam ainda ameaçar e afetar novamente nossa integridade física e moral. Nessa história nos sentimos mais credores do que devedores.  Nos anima a certeza de que não delatamos (objetivamente falando) e não ocasionamos prejuízos à esquerda. Finalizando, aguardamos o senhor enviar suas perguntas por e- mail. Serão lidas e se possível respondidas.

Gilberto Giovannetti

Não me surpreendi com o tom da mensagem, pois eu já esperava que o casal não seria simpático a minha proposta de contar em detalhes o que havia acontecido antes e depois da prisão dos mesmos em julho de 1974 na rodoviária de Curitiba. No dia seguinte voltei a escrever para Gilberto Giovannetti contando para ele o motivo pelo qual eu estava empenhado na busca. Eu precisava ganhar a confiança daquele homem, marcado por ações indignas para um intelectual. Gilberto queria ser ouvido e eu o ouvi com a paciência de um confessor e com espírito desarmado. Naquele momento não me interessava julgar o casal, mas sim obter a confiança deles, por isso procurei tratá-los com comiseração e respeito.

De: Aluízio Palmar

Para: Gilberto Giovannetti

Data: junho, 24, 2003

Assunto: De Foz

Prof. Gilberto Giovannetti

Em primeiro lugar quero esclarecer que só tenho um objetivo em tudo isso: é entender o que aconteceu.  Preciso entender porque sou parte dessa história e também pelos laços de amizade e companheirismo que me ligavam às pessoas que desapareceram. Ainda não sei precisamente em que vocês poderão me ajudar. Talvez amarrando algumas pontas, já que vocês também tiveram uma participação intensa naqueles acontecimentos.

Dito isso, e entendendo que vocês merecem uma explicação de minha parte, vou falar um pouco de mim e do por que estou nessa busca.

Pois bem, saí da prisão em janeiro de 1971 e fui para o Chile (sequestro do embaixador suíço). No ano seguinte saí do Chile e fui para a região do Alto Uruguai (fronteira Brasil/Argentina) organizar a Frente Sul da VPR. Em janeiro de 1973 eu soube das quedas em Pernambuco e decidi cortar de vez todos os contatos com o Chile (leia-se Onofre e Cia). Eu e demais companheiros que desenvolvíamos aquele trabalho caímos então na mais completa clandestinidade.  Algum tempo depois, diante daquele quadro que inviabilizava a continuação da luta armada decidimos pela desmobilização e cada um foi tratar de sua vida. Pois bem foi então que eu montei uma estrutura na Argentina e com isso legalizei minha presença naquele país. Consegui levar minha mulher e minha filha Florita para, digamos, meu “santuário”, e ali ficamos até o retorno em 1979. Nesse ínterim nasceram  mais  dois  filhos,  a  Andréa  e  o Alexandre.

É claro que durante todo o tempo em que vivi na Argentina tive muitos problemas de segurança, entretanto o mais sério – e aí é que surgiu minha ligação com o destino do grupo que desapareceu aqui na fronteira – foi em janeiro de 1974, quando quase dei de cara com o Onofre e o Alberi em Buenos Aires. Os dois conversavam na esquina da Avenida Corrientes com a Rua Florida e ao vê-los, entrei em um café e decidi dar um tempo encostado no balcão. De repente alguém toca meu ombro. Era o Alberi, que eu já conhecia do Presídio do Ahú, em Curitiba. Ele me disse que sabia que eu estava fazendo um trabalho na região do Alto Uruguai e que ele havia montado uma infraestrutura na região de Santo Antônio (fronteira seca BR/Arg.). Disse ainda que por esse esquema iriam entrar Onofre e outros companheiros que estavam em Buenos Aires. Perguntou se eu tinha interesse em juntar nossos trabalhos e colocou a minha disposição a estrutura de Santo Antônio do Sudoeste. Eu respondi que a proposta era interessante, marquei um encontro para as dez da noite no qual acertaríamos os detalhes.

Isso aconteceu pela manhã e logo depois de meio- dia dei no pé; saí de Buenos Aires e fui para o meu “santuário”, onde fiquei até 1979, quando voltei para o Brasil.

Eu acho que tive este comportamento em Buenos Aires (marcar encontro e não comparecer) um pouco devido à falta de confiança naquela estrutura, mas principalmente porque naquela altura dos acontecimentos eu estava convencido de que aquela luta, da forma como era lutada, estava perdida. Até hoje, passados trinta anos, não sei ainda o que pesou mais na minha decisão; se foi a avaliação da conjuntura política ou comodismo, que poderia ser definido como desbunde – vocês lembram da palavra? A gente usava muito essa palavra na época. Uma coisa é certa: eu sobrevivi e os outros não. Mas carrego um não sei o quê de culpa, pois eu deveria ter alertado os demais companheiros já que eu havia pressentido perigo na ocasião em que fui convidado pelo Alberi a entrar em seu esquema.

Esse sentimento de ter faltado com o grupo aumentou depois que fiquei sabendo do desaparecimento de Onofre e mais cinco ou seis companheiros. Desde então tem sido para mim uma obsessão a busca da circunstância em que ocorreram as mortes.

Uma boa oportunidade aconteceu em julho de 2000, quando recebi um telefonema de uma pessoa que disse saber onde foram enterrados os sete da VPR. Essa pessoa se identificou como militar reformado e disse que estava em Curitiba e que desejava um contato pessoal comigo, etc e tal. Ah, ele revelou que me procurou porque havia lido uma entrevista que eu havia dado alguns dias antes para a Folha de Londrina, na qual eu disse que já não interessava saber os nomes dos culpados, mas sim as circunstâncias e o paradeiro das pessoas desaparecidas.

Como era impossível eu sair de Foz naquele momento e ir ao seu encontro em Curitiba, passei a incumbência para um amigo que conhece muito bem toda esta história. Meu amigo marcou a conversa num barzinho curitibano e depois de conversarem generalidades restou um croqui feito de próprio punho pelo informante e que meu amigo me enviou por fax.  De  posse  desse  material  entrei  em contato com Nilmário Miranda e começamos então o trabalho de pesquisa na área de Nova Aurora, que acabou dando em nada. Depois dessa eu voltei à estaca zero. O que eu tenho atualmente, além desse trabalhou em Nova Aurora, são muitas anotações, feitas a partir de pesquisas aqui em Foz do Iguaçu e na região. Mas tudo é muito confuso e tenho a sensação de que nunca vou ficar sabendo o que aconteceu.

Não li a revista Veja e não conheço o depoimento que vocês deram à Comissão 9.140. Depois daquela nossa conversa ao telefone gostaria de não fazer  perguntas. O melhor mesmo seria um contato pessoal, mas como não posso ir a São Paulo, o jeito é perguntar e aguardar que vocês respondam.

1 – O que vocês sabem sobre o grupo dos seis ou sete?

2 – Como estava o Onofre em Buenos Aires? Decidido a voltar? Com que estrutura ele contava na fronteira e aqui no Brasil?

3 – Alguém mais além de Onofre, Lavechia, Daniel, Joel, Gilberto, Ernesto e Vítor?

4 – Vocês ficaram sabendo da estrutura de Santo Antônio (serraria, caminhões etc.)

5 – O grupo usou a estrutura de Santo Antônio?

6 – O grupo chegou a usar um sítio ou chácara em Puerto Iguazú (Arg.), próximo da estrada que leva ao aeroporto?

7 – Que tipo de informação posso ter do capitão Cerda e dos tenentes Aramis e João Neusar?

8 – Na conversa por telefone você falou de uma armadilha aqui em Foz. Eu não estou sabendo disso. Como foi?

Aluízio Palmar

Na semana seguinte Gilberto Giovannetti respondeu; dessa vez foi mais direto e menos formal comigo. Eu o havia convencido de que minha intenção não era julgá-lo. Relatou a forma como era feito o contato entre eles e Onofre e revelou que o emissário era o sargento Alberi, portador da última mensagem de Onofre que dizia “começa uma nova etapa da luta”. Sua correspondência me ajudou ainda a precisar datas e esclarecer algumas dúvidas sobre o modo de operação do grupo remanescente da VPR que desapareceu em julho de 1974.

De: Gilberto Giovannetti Para: Aluízio Palmar Data: junho, 30, 2003

Data: junho, 29, 2003

Assunto: R: De Foz

Sr. Aluízio Palmar,

Li seu texto com atenção. O tom franco de suas informações, a  descrição  do  seu  estado  de espírito naqueles momentos e de seus encontros em Buenos Aires me convenceram de sua sinceridade. Tínhamos (eu pelo menos, nem tanto minha companheira) na ocasião a mesma percepção que o senhor do momento e do processo.  Sua frase “porque naquela altura dos acontecimentos eu estava convencido que aquela luta, da forma como era lutada, estava perdida” poderia ser minha e digo a mesma coisa, com outras palavras, no livro-depoimento que tenho pronto. Já vinha negando a chamada “Luta armada”, não participava de nenhuma organização e embora minha companheira ainda tivesse algumas ilusões (mesmo muito fragilizada pelas perdas e sofrimentos, não se permitia “vacilar”,  sentimento  que  o  senhor também   viveu),   estávamos   pouco   a   pouco retificando rumos, nos integrando mais à vida cotidiana, trabalhando e estudando com nomes falsos e eu pensava muito nas formas de luta pacíficas e democráticas, lamentando nossa situação. Tentei, mas não insisti o suficiente, fazê-la “cortar” o contato que  mantinha  com Onofre por formas clandestinas (cartões postais camuflados que escondiam as mensagens coladas nas partes internas do cartão) e inclusive tendo contatos arriscados em diferentes ocasiões com o mesmo, em Santiago e B. Aires. Se Onofre acreditava que nós dois fazíamos parte de sua estrutura, não compreendeu a fragilidade de nossa situação e inclusive incorreu no velho vício da esquerda de superestimar sua força. Creio que mesmo nós, apesar dos cuidados e da disciplina com a segurança, não tínhamos muita noção de nossa própria fragilidade. Eu não lhe negaria

apoio   solidário,   mas   não   apoiaria   nem participaria de ações armadas – por entendê-las suicidas – como, aliás, deixei claro no bilhete- resposta que lhe enviei e que desconfio não chegou a ler  (o emissário era o Alberi). Estes episódios estão escritos em texto que vou localizar e te enviar no próximo e-mail, pois não tive tempo de fazê-lo. Nesse relato você terá a resposta da sua 10ª questão.

Sinto dizê-lo, mas a 10ª questão é a única que, por ter sido vítima, posso esclarecer e dar informações.

Nas demais, particularmente nas questões de 3 a 9, as respostas são NÃO e NÃO SEI. Explicarei melhor. De fato nada sabíamos (e fazíamos questão de não saber pelas normas de segurança que nos acostumamos a manter naquelas condições) sobre os planos de Onofre, portanto as questões 3, 4, 5, 6 e 7 fogem totalmente de nosso conhecimento antes e depois dos fatos. TAMBÉM NADA SOUBEMOS EM NOSSOS CONTATOS COM MILITARES NOS ANOS SEGUINTES. Os militares sempre mantiveram uma conduta extremamente  profissional  conosco  e  na  única ocasião em que ousei perguntar sobre Onofre tive como resposta um sorriso amarelo, enigmático (já relatei isto em outro texto). Com isso acho que esclareço também as questões 8 e 9, quer dizer, nunca soube da existência dos militares citados nestas  questões.  Desnecessário  dizer  que  os próprios  militares  com  quem  tivemos  contatos nunca    nos    forneceram    suas    verdadeiras identidades, patentes etc.

Vou tecer alguns comentários sobre as questões 1 e 2.

Sobre a 1ª: Tudo que sei do grupo foi através da Imprensa, a partir do momento em que os fatos começaram a vir à tona.

Sobre a 2ª: parece que Onofre estava, em meados de 1974, decidido a voltar. Um bilhete seu que Alberi portava para minha companheira e para mim (veio dentro da capa de uma bíblia) falava que “uma nova etapa da luta começava” o que me deixou preocupado por sua falta de consistência e como afirmo em outro texto “senti besteira em andamento”. Devolvi pela mesma via e portador, no dia seguinte, a resposta em bilhete a que me referi anteriormente.  O desenrolar estará no texto que vou enviar depois.

Me permito dizer que, pela minha análise, seu pressentimento e “furo” no encontro marcado poupou-lhe a vida. Acumulei indícios e conheci práticas militares suficientes para concluir que além de “bichado” por dentro, ou seja infiltrado, como quase toda a esquerda, o grupo em B. Aires e mesmo nós em S. Paulo, estávamos sendo “monitorados”, ou seja, com vigilância velada permanente, bastante profissional. Nada a ver com as caricaturas de “tiras” estúpidos que nós alardeávamos e nos auto-enganávamos.

Também creio que nas condições em que estávamos enredados havia poucas ou nenhuma possibilidade de alertar quem quer que seja. Avisar quem? Como? Haveria crédito a “pressentimentos”?  Senti a mesma angústia de tentar e não saber como comunicar o que estava acontecendo conosco (sequestrados, chantageados, ameaçados, depois vigiados permanentemente). Por essa dificuldade e por não confiar em mais nada – a não ser em mim e em minha companheira – resolvi buscar solução em uma “carreira solo”, contando com as mudanças no cenário político. A duras penas nossas vidas foram poupadas.

Nada sei da Comissão 9.140 a que o senhor se Refere. Agradeço se puder me elucidar a respeito. Por ora é o que tinha a manifestar, assim que

puder envio o texto prometido. Espero que o senhor se recupere e melhore de saúde e fico à disposição caso ainda tenha alguma questão a fazer.

Atenciosamente, Gilberto Giovannetti

No início do mês de julho de 2003 eu voltei a escrever para Gilberto

Giovannetti.

Dessa vez com a intenção de continuar aproximando-me dele para tirar mais algumas informações.  Entendia seu estado de espírito, que estava machucado e não queria falar sobre o assunto, porém eu tinha fé que ele não ia continuar sonegando as informações que possuía. Eu tinha esperança de que em qualquer momento Giovannetti iria passar-me alguma pista que poderia direcionar minha busca com maior precisão. Foi então que o provoquei dizendo que ele e Madalena Lacerda haviam sido sequestrados no dia sete de julho de 1974, quatro ou cinco dias antes do “grupo de Onofre” ter sido chacinado. Com isso insinuei que o casal seria responsável pelas mortes dos militantes da VPR que entram em território brasileiro em julho de 1974.

De: Aluízio Palmar

Para: Gilberto Giovannetti

Data: julho, 5, 2003

Assunto: De Foz I

Ao professor Gilberto Giovannetti,

Em boa hora esta retomada de contato. Tive acesso recentemente a vários documentos referentes ao sargento Alberi e estou tentando reconstituir seus passos, desde que ele saiu da prisão, provavelmente em 1973, até a sua morte em 10 de janeiro de 1979.

Faço isso com o objetivo de descobrir o que

Aconteceu com o grupo remanescente da VPR, naquela desesperada tentativa de continuar a luta armada em 1974.

Não tem sido nada fácil esta reconstituição, pois. tanto na militância política como na vida particular o Alberi foge dos padrões da esquerda  latino-americana e especificamente da brasileira. Eu o conheci no Presídio do Ahú, em Curitiba, onde estive preso no primeiro semestre de 1969. Naquela ocasião ele me apresentou um plano de fuga e queria que eu o acompanhasse. Porém, alguns dias após a proposta do Alberi, eu fui transferido para a Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Só voltei a vê-lo quatro anos mais tarde em Buenos Aires, como eu já relatei anteriormente. Esta minha busca pelo grupo remanescente da VPR tornou uma ideia fixa com o passar do tempo. Às vezes eu penso que esta minha teimosia é movida pela busca de saber como teria sido minha morte caso eu tivesse acompanhado o grupo. Pode até ser isso, mas eu acho que o motivo principal é o fato de eu estar aqui em Foz do Iguaçu, no lugar onde tudo aconteceu.

Estou sistematizando as informações que possuo e tenho saído a campo e ouvido pessoas que conviveram com Alberi nos seus últimos anos. Já falei com alguns familiares, falta a viúva (que mora em Humaitá/RS) e uma pessoa em Mato Grosso. Nesta tragédia vocês figuram como vítimas e também sobreviventes. Podiam ter caído no ponto de 30 de junho com o “Jonas”, mas a repressão preferiu sequestra-los no dia 7 de julho. Por quê? Talvez pela possibilidade de vocês abortarem de alguma maneira a ação principal: prisão do grupo remanescente. No momento da prisão de vocês a “operação Juriti” (acho que foi esse mesmo o nome dado à ação pelos militares) já estava formatada e parte do grupo liderado por Onofre Pinto já se encontrava na fronteira (provavelmente na serraria que estava em nome do irmão de Alberi, em Santo Antônio/PR). Onofre, segundo as informações disponíveis (testemunho de Id Alina), saiu de Buenos Aires no dia 11 de julho (quatro dias após vocês terem sido sequestrados).

Há uma lacuna a partir dessa data e o único fato substantivo teria sido a ida de vocês a Buenos Aires para avisar Id Alina que o Onofre estava morto (Luiz Maklouf Carvalho, em Mulheres que foram à luta armada). Quanto ao Alberi, ele aparece em 1975/76 como proprietário de uma chácara em Puerto Iguazú, Argentina,fronteira com o Brasil, próxima do aeroporto.

Pode ser temerário afirmar isso, mas todas as informações colhidas me levam a acreditar que Alberi foi o pivô das prisões dos membros do grupo remanescente da VPR. Primeiro pelo comportamento leviano dele ao me convidar, no encontro casual em janeiro de 1974 em Buenos Aires, para ingressar no grupo e entrar pelo esquema da serraria de Santo Antônio. Segundo porque assim que Alberi saiu da prisão, foi para o Chile, México e Argentina, transitou na colônia de exilados nesses países, ao mesmo tempo em que circulava com total desenvoltura por Foz do Iguaçu, Humaitá (RS) e Crissiumal (RS). Terceiro porque depois do massacre   ele   continuou circulando ostensivamente aqui pela fronteira e suas companhias eram policiais e militares da 2ª Seção do Exército. Essas minhas afirmações estão sustentadas por documentos.

Ficam ainda muitas dúvidas, como, por exemplo, onde, como e quantos foram mortos. Também os detalhes da operação – seu planejamento e ação direta. Foram os militares do CIE, pessoal do major Curió, do coronel Paulo Malhães? Estou atrás desses dados, pois eles podem me levar a descobrir o local onde foram enterrados os corpos.

Vou continuar com minha pesquisa, professor. Sei que vocês não possuem muitas informações, mas o que tiverem passem para mim.

Aluízio Palmar

Em meados de julho, Giovannetti voltou a escrever. Ele aceitou minha provocação e dessa vez contou a forma de atuação de Alberi e adiantou algumas informações que mais tarde detalhou quando me enviou um extenso relatório. Considero este, um dos documentos com o maior número de informações sobre o grupo repressivo que atuou na Operação Juriti.

De: Gilberto Giovannetti

Para: Aluízio Palmar

Data: Quarta-feira, 15 de julho de 2003, 9:24 PM Assunto: R De Foz I

Ao Sr. Aluízio Palmar

Devo estar me ausentando de São Paulo por alguns dias, portanto não estranhe se demorar um pouco para o próximo e-mail. Encontrei e estou enviando em anexo um texto de 21 páginas que já está redigido há anos. Faz parte e foi extraído do meu livro-depoimento e como o senhor perceberá traz muito de minha subjetividade e vivência naqueles anos.

O texto poderá esclarecer melhor algumas questões, como, por exemplo, como e em que circunstâncias conheci Madalena, como acabei me envolvendo nessa história toda, sem ser militante da VPR e sem conhecer Onofre, como vivíamos, quais as estratégias da sobrevivência, algumas contradições e ambiguidades que vivíamos.

Poderá avaliar a desenvoltura da atuação do Alberi e as reais condições de nossas pessoas, que provavelmente eram vistas e apontadas pelo grupo, por um misto de má-fé, oportunismo e delírio, como “base” em São Paulo.

Entenderá como foi à armadilha que nos atraiu, aproveitando nosso desespero, para sairmos de São Paulo e sermos sequestrados no trajeto sem levantar suspeitas entre nosso familiares. Saberá o que aconteceu no cativeiro, como não entregamos ninguém, o acordo feito etc.

Estes acontecimentos alteraram profundamente nossas vidas – trazem uma carga emocional profunda. Saiba que a Madalena até hoje não leu e se recusa a ler o que tenho escrito.

Tentando manter a objetividade gostaria que Refletisse sobre as seguintes afirmações e constatações que trago daquela experiência:

– Tratou-se de uma operação policial-militar de grande envergadura, com largo tempo de preparação, muitos recursos humanos e materiais, envolvendo forças armadas, PF, serviços de inteligência, DOI-CODI, DOPS estaduais, etc. que deve ter exigido um grande esforço de coordenação e comando.

– Foi conduzida com muita competência militar com grande e profundo conhecimento apoiada nos serviços de inteligência e agentes infiltrados, vigilância constante, etc. Seus participantes também tinham restrições de segurança, isto é, conheciam parcialmente suas missões e provavelmente apenas os altos comandantes dominavam todo a operação.

– Atuou sem limites territoriais e nacionais. Isto quer dizer que além do apoio das forças repressivas dos países vizinhos, os agentes transitavam e trabalhavam na Argentina, Chile, etc. – se necessário como clandestinos dos outros órgãos.  Portanto é difícil afirmar se tudo ocorreu em uma só operação (me refiro à eliminação dos integrantes do grupo) ou se foram ações diferentes. Parece-me (pura especulação) mais provável que tenham sido apanhados e

assassinados individualmente ou pequenos grupos, com a repressão aproveitando-se da Segunda– como ocorreu conosco – na marcação de pontos individuais e sigilosos com os demais.

– Embora não tenha elementos objetivos para afirmar (nada vi, ouvi ou falei a respeito) minha intuição me leva a pensar que a operação de que fomos alvo era articulada – sem que soubéssemos – com outras operações simultâneas. Daí não dá para afirmar que tudo aconteceu de uma só vez, em um só local.

– Lembro-me de que em nosso caso tratou-se de um grande aparato com muitos veículos e troca de equipes. Em pouco tempo – ao longo de um dia e uma noite fomos deslocados de Curitiba para São Paulo e para outro lugar, provavelmente em Goiás (estávamos empapuçados e não davam informações, a não ser as que queriam). Os agentes da ação em Curitiba tinham, em parte, sotaque sulista e desapareceram quando nos deslocamos para São Paulo e nunca mais nos vimos. É preciso entender que uma organização armada não se apresenta na totalidade e o que vemos é apenas a ponta de um imenso iceberg, onde a maior  parte  fica encoberta.

– Talvez a leitura do texto que envio possa suscitar novas indagações para o seu quebra- cabeça, mas creio que também possa elucidar o modus operandi e a dinâmica do que aconteceu.

– Ao recompor os acontecimentos tempos depois fiquei com uma dúvida: O Alberi tinha manchas naturais no rosto. Naqueles momentos de tensão e até recentemente cheguei a pensar que as marcas seriam escoriações, decorrentes de pancadas, que no momento do encontro não me chamaram a atenção, mas posso ter me enganado. Além dessa informação

específica gostaria que o Sr. me enviasse o conteúdo dos depoimentos do Marival. Confesso que até agora não me animei nem tive coragem de procurar saber mais sobre o mesmo.

Atenciosamente

Gilberto Giovannetti

Em 25 de julho eu voltei a escrever para Gilberto Giovannetti. Dessa vez procurando definir com maior precisão a data da chacina. Eu sabia que o grupo havia saído de Buenos Aires em 11 de julho de 1974, porém tinha dúvidas de quando ele entrou em território brasileiro e em que momento seus membros foram assassinados. Durante minhas pesquisas nos arquivos da Polícia Federal e da Itaipu eu descobri alguns documentos que faziam referência ao Alberi e às investigações que os órgãos de informações faziam na região. Eu tinha dúvidas de como e quando aconteceu a chacina.

Para: Gilberto Giovannetti

De: Aluízio Palmar

Data: Quarta-feira, Julho 25, 2003 10:34 PM Subject: DE FOZ II

Ao

Prof. Gilberto Giovannetti

Agradeço sua deferência ao procurar esclarecer-me sobre os últimos momentos, ou acontecimentos, envolvendo o grupo remanescente da VPR. É como eu disse antes, qualquer tipo de informação pode ajudar a decifrar este que é um dos mais instigantes mistérios do período ditatorial.

Eu tenho algumas dúvidas sobre a versão corrente e que se apoia em dados fornecidos por Marival Chaves. Por exemplo: os sete foram assassinados em um mesmo momento? Foi mesmo em julho de 1974? Não terá sido no final desse ano ou em 1975? Eles foram presos no Brasil ou na Argentina? Que papel teve Foz do Iguaçu na operação montada para

capturar o grupo? O grupo ficou quanto tempo na fronteira?

Sei que esclarecer essas e outras tantas dúvidas vai ser difícil, ou, por que não dizer, impossível. A oportunidade foi aquela, quando apareceu aquele cidadão informando que os membros do grupo estão enterrados no campo de Nova Aurora. Vou aguardar ansiosamente o seu texto, na esperança de  que  venha  qualquer  pista  ou indicação para continuar pesquisando. Atenciosamente,

Aluízio Palmar

Eu continuei a me corresponder com Giovannetti e a insistir em situar com precisão algumas datas. Não estava satisfeito com o que ele havia mandado para mim. Um mês após eu ter enviado meu pedido de mais informações sobre o a prisão dele e de Madalena, ele me detalhou o sequestro na rodoviária de Curitiba e mais uma vez afirmou ter entendido que os militares insinuaram que Onofre estava morto e que só avisaram Idalina da morte do marido após terem tirado conclusões ao ouvirem as conversas dos militares.

De: Gilberto Giovannetti

Para: Aluízio Palmar

Data: Monday, Agosto 25, 2003 11:19 PM Objeto: De Foz 2

Senhor Aluízio Palmar,

Hoje encontrei um tempo e abri os e-mails pessoais. As vezes passo dias sem abrir este endereço eletrônico, que utilizo pouco, pois tenho outros, inclusive no local de trabalho. Li seu e-mail e anexos e reconheço que fiquei satisfeito em verificar que, aos poucos, a verdade dos fatos, encoberta pela própria natureza clandestina e sigilosa deles (nos dois lados do confronto), pelas artimanhas e desinformações próprias de ações militares (“na

guerra a primeira vítima é a verdade”) e também tumultuada por acusadores e caluniadores apressados em difundir versões sem provas suficientes, acaba se delineando e vindo à tona. Estou anexando outros trechos do texto que tenho pronto onde descrevo como e por que procuramos Idalina. Quero ressaltar que nós não tínhamos certeza de nada sobre o que ocorrera com o seu marido, mas é claro que as evidências não eram nada boas, que deveríamos alertá-la e avaliamos que sua volta ao Brasil seria bom para ela e para a filha. Também avaliamos que – naquele período de insegurança e incerteza – a própria Idalina poderia ser uma testemunha de nossa passagem por lá, caso também viéssemos a “desaparecer”. Gostaria também de fazer uma pequena retificação no seu texto abaixo, quando afirma que “Onofre, segundo as informações disponíveis (testemunho de Idalina), saiu de Buenos Aires no dia 11 de julho (quatro dias após vocês terem sido sequestrados)”. Na realidade, conforme consta do mesmo livro que o senhor citou, fomos sequestrados no dia 12 de julho, um sábado, na estação rodoviária de Curitiba, conforme o plano acertado com o “Jonas”. Dois dias, portanto, após a saída de Onofre. Chegamos ao cativeiro, no estado de Goiás, na madrugada de domingo, dia.

14/07. Só fomos interrogados dias depois, os militares não tinham a menor pressa, conforme o texto anterior que enviei. Todos os fatos apontam para uma operação coordenada. Já havia lido nos jornais sobre o depoimento do Sr Marival, mas desconhecia detalhes. Se tiver outros depoimentos ou informações sobre o caso ficaria grato se me deixasse a par

Abraços

Gilberto Giovannetti

A partir dessa minha correspondência com Gilberto Giovannetti eu me convenci de que Onofre Pinto estava obcecado em retomar a luta armada e para tanto criou em sua mensagem um quadro irreal, fruto de sua alucinação. A mensagem que Onofre enviou pelo Alberi para Madalena Lacerda dentro da capa de um exemplar da Bíblia, dizendo que “uma nova etapa da luta começava” ilustra muito bem o seu estado de espírito. A troca de e-mails também me ajudou a situar a data da chacina, que deve ter sido no dia 12 ou 13 de julho de 1974.

Foi no dia 12 que um grupo operacional do Centro de Informações do Exército sequestrou o casal na rodoviária de Curitiba.  Madalena e Gilberto estavam a caminho de Foz do Iguaçu, onde se encontrariam com Alberi. Parece que o sargento da Brigada Militar do Rio Grande do Sul queria engrossar o número de vítimas da arapuca armada na fronteira. A intenção monstruosa foi abortada pelos militares que comandavam a ação. Preferiram manter o casal vivo para que ele pudesse ser útil futuramente.

Em um texto que leva o título de Corações clandestinos, Gilberto Giovannetti fala de seu relacionamento com Madalena, do contato com Alberi em São Paulo e da prisão em Curitiba.  Abaixo, transcrevo alguns trechos do.Documento.

“Madalena ainda sofria da síndrome do sargento Getúlio, o que se guiava por valores e não por conhecimento. Por lealdade a antigos companheiros e sua própria história de resistência ainda alimentava ilusões sobre a luta armada. (…) Ela obtivera documentos a partir de uma certidão de nascimento conseguida em um cartório da Baixada Fluminense com o nome de Ana Barreto Costa. (…) Vez ou outra recebíamos mensagens de Onofre através de cartões postais disfarçados. A foto do postal era descolada do verso, escrevia-se a mensagem em seu interior e as partes eram novamente coladas, só sabendo alguém poderia descobrir o truque. (…)

Naquela tarde de 13 de junho de 1974 Madalena chega ao hotel de surpresa e ainda esbaforida, avisa que haviam detido meu irmão e meu cunhado que passaram a noite depondo no DOI-CODI na Rua Tutóia. (…) Uma das primeiras providências foi avisar Onofre na Argentina do que se estava ocorrendo conosco, para deixá-lo de sobreaviso. Madalena usou o sistema habitual de cartões postais. Não sabemos se o cartão enviado chegou ao destino ou foi interceptado. (…)

Os cartões postais enviados pelo Onofre iam para o endereço de uma pessoa legal que desconhecia o que se passava e mantinha contato com Cássio. Devemos reconhecer que nossos frágeis esquemas de segurança envolviam pessoas inocentes. Estratégias desesperadas de clandestinos sob ditaduras. Nesse endereço para correspondência, apareceu, em fins de junho, uma pessoa nos procurando. Buscava contato e trazia qualquer coisa – senha ou coisa parecida, não me lembro bem – que o ligava como enviado do Onofre e solicitava um “ponto”, aguardando a resposta para determinado dia. Cássio trouxe a informação e marcamos o “ponto” para um domingo, dia 30 de junho, 10 horas da manhã. Pensei em esquemas de segurança. O local do “ponto” deveria ser em um espaço aberto, que permitisse uma observação prévia e a longa distância para poder detectar qualquer movimentação estranha. Escolhi a Praça Duque de Caxias, atual Princesa Isabel.

Não entraria diretamente no “ponto”. Faria um levantamento prévio a partir das 09h30mim e Cássio iria fazer o primeiro contato, com vida perfeitamente legal e nenhum vínculo partidário, se fosse preso não corria riscos tão grandes quanto nós. Depois caminhariam vigiados por mim até um ponto de ônibus na Avenida Cásper Libero onde Madalena já estaria aguardando misturada entre os passageiros da fila e embarcaríamos com destino aos bairros da Zona Norte. Em um local

escolhido no momento propício, seguros de que ninguém nos seguiria, desceríamos todos, os abordaríamos, Cássio iria embora. (…)

“Jonas” se apresenta, Cássio despede-se. Explica que chegara da Argentina, onde estivera com Onofre, caminhamos até um bar, escolhemos uma mesa ao ar livre e iniciamos a conversa. Estava informado de nossa situação pelo Onofre, segundo disse.

Discutimos nossa insegurança pessoal, a impossibilidade  de  se  continuar  no  país. Concordou imediatamente. Propôs prestar ajuda na operação de fuga para o exterior, era de Foz do Iguaçu, com muitos conhecidos e facilidade de trânsito na fronteira. Deveríamos viajar via Curitiba para encontrá-lo na rodoviária de Foz do Iguaçu no sábado seguinte, nos passaria pela fronteira e seguiríamos ao encontro de Onofre. Deu-nos informações sobre os horários de ônibus. Desesperados, aceitamos a proposta.

Marcamos um encontro no dia seguinte, no Jardim da Luz, para confirmar nossa resposta e entregar nossa mensagem ao Onofre, na mesma bíblia. Assim o fizemos.

A capa dura da bíblia continha uma carta do

Onofre (a letra era aparente sua, mas também existem grafólogos na repressão). Ele se apresentava a mim, falava algo de um novo momento da luta que se aproximava, senti besteira em andamento. Como alguém podia continuar pensando em ações armadas naquele momento. Respondi simpaticamente, afirmando que descartava a luta armada  e  falei  da  importância  do  trabalho político de “massa”, de participar da produção. Coloquei a resposta, colamos a bíblia. No dia seguinte, devolvemos a bíblia com mais alguns objetos (havia uma minicâmara fotográfica Minox, que minha companheira devolvia a Onofre), confirmamos a viagem e nos despedimos.

Passamos a semana preparando a viagem, arranjando o dinheiro necessário e embarcamos sábado à noite para Curitiba. Fomos sequestrados numa ação conjunta de órgãos de segurança na rodoviária de Curitiba. Aos gritos de “é traficante, cuidado com a arma”, (não andava armado), me encapuzaram e algemaram.(…)

Viagem de volta a São Paulo. Os agentes estavam felizes. Um deles, o de boné, conversava em código pelo rádio com outros policiais que seguiam em comboio pela BR-101. Desliga o rádio e começa a cantar “onde a vaca vai o boi vai atrás”. Manter o autocontrole, achar um jeito de me comunicar com as pessoas, estamos indo para o DOI-CODI. Não posso abrir três coisas: que sei de Onofre, que minha companheira esteve em Cuba, que teríamos um contato em Foz do Iguaçu. Não esconderia já fato conhecido da repressão, meu passado como militante. Até abriria, se houvesse muita pressão, nomes que já estavam, ou haviam cumprido pena.  Depois de uma tarde, não precisaria mais me preocupar com o contato de Foz. Se nós não chegássemos ele estava prevenido de que teríamos caído e avisaria Onofre. Não precisei abrir nada. As pressões não eram tão grandes e as perguntas calmas e sem violência (…).

De volta ao asfalto, pararam em um posto de estrada onde contataram mais agentes. Mudam mais uma vez de carro. Um dos agentes que encontraram e segue conosco, um negro parrudo (NR: Mais tarde descobri que seria o sargento Aniceto Antônio Carvalho – Laecato), ao me ver apenas disse: – “seu santo é muito forte Gilberto”. Ainda bem, estava mesmo precisando de aliados, mas nada falavam. Vai saber o que se passara. (…)

Uma tarde fui levado encapuzado para outra casa, mais ampla. Tiraram o capuz, sentei-me diante de uma mesa. Quem viveu esses horrores sabe o que isso significava. A manutenção do capuz era um indicativo de que o militante seria mantido vivo e depois não poderia reconhecer as pessoas que o interrogaram. Tirar o capuz significava o contrário. Pedi meus óculos.

O interrogador apresentou meu histórico e confirmei minha militância de 67 a 69. Perguntou se sabia do Onofre. Não. Perguntou-me se minha companheira estivera em Cuba. Não. Insistiu, não sei, pergunte a ela. Depois mostrou fotos de nossos amigos e dos encontros com “Jonas” (NR: Alberi). Perguntou-me se sabia quem era. Não. De nossos amigos falei que não tinham nada a ver, eram apenas amigos. As fotos jogadas na mesa como cartas de baralho registravam todos os momentos em que estivemos com o contato “do Onofre”, e que achara seguros, aquilo me abateu. Por um momento, consegui ler no papel sobre a mesa do interrogador: Destacamento de Operações Internas/Centro de Operações de Defesa Interna e, logo abaixo, Operação Juriti”.

Em um outro texto, intitulado Se vás para Chile, Gilberto Giovannetti conta como foram as viagens ao exterior a mando dos militares e revela que eles chegaram a desconfiar de que Onofre também havia feito um acordo semelhante ao deles.

Nós já sabíamos que o Alberi (o “Jonas”) era um agente infiltrado (mantivemos essa descoberta em segredo dos militares) e procurou-nos em nome de Onofre, nos atraindo para a armadilha. Mas não sabíamos mais nada. As poucas vezes em que perguntamos sobre Onofre aos agentes da repressão eles não respondiam, apenas davam um sorriso

enigmático, que poderia significar muitas coisas, inclusive de que Onofre havia se “passado” (chegamos a pensar nessa hipótese). Idalina não recebia informações do marido desde o período em que fomos sequestrados, passava necessidade, juntamente com a filha, em uma situação muito precária. Mulher simples, sem nada contra ela, no máximo  teria  que  dar  um  depoimento  quando chegasse ao Brasil e se reintegraria a seus familiares. Além do mais os militares não fariam nada que pudesse nos “queimar”, pois estavam interessados em coisas mais “quentes”. Discutimos com Idalina essa possibilidade de voltar para casa sem informá-la, é claro, de nossa complicada situação. Ela aceitou e animou-se viajamos juntos até São Paulo e nos despedimos. Não nos vimos mais. Durante essa viagem tivemos contatos – conforme instruções – com os agentes brasileiros, por cartões postais e por telefone. Um agente esteve conosco em B. Aires, e em Porto Alegre encontramos nosso coronel.

No dia 25 de agosto recebi o último e-mail de Gilberto Giovannetti. Durante aproximadamente dois meses mantivemos essa correspondência, que foi extremamente útil para que eu entendesse a fragilidade da operação retorno “liderada por Onofre”. Está entre aspas porque a verdade é que todos os membros do grupo, inclusive Onofre, foram conduzidos à distância e de forma premeditada por militares sádicos envolvidos em ações de extermínio. Foram induzidos a voltar para o Brasil e morderam a isca atirada pelo traidor de que na região Oeste do Paraná existia uma ampla base de apoio para o grupo guerrilheiro. A Operação Juriti foi montada com objetivo de justificar a manutenção da máquina repressiva.

Onofre Pinto foi usado para montar o grupo que seria vitimado pelos cães de guerra da ditadura e Madalena Lacerda e Giovannetti as provas vivas entregues ao Alto Comando em Brasília. A cilada montada na fronteira fazia parte da nova política de atrair, matar e não deixar vestígios, estabelecida em

1973 na reunião entre o general Emílio Garrastazu Médici e seu sucessor, Ernesto Geisel. A partir do final daquele ano foram executadas operações que resultaram em prisões, torturas, execuções de militantes da resistência a ditadura e ocultação de seus cadáveres.

Os textos de Gilberto Giovannetti me ajudaram a reconstituir o caminho percorrido por Onofre Pinto e pelos militantes que ele conseguiu arrebanhar.

Onofre, Lavechia, Daniel, Joel, Vítor, Ernesto e talvez outras pessoas, saíram de Buenos Aires – acompanhados por Alberi – no dia 11 de julho de 1974, cruzaram no dia 12, a fronteira da Argentina com o Brasil, em Santo Antônio do Sudoeste, no Paraná, e foram para um sítio ou serraria que seria a “estrutura da organização”. Ao mesmo tempo em que era feito esse movimento, Madalena Lacerda e Gilberto Giovannetti saíram de São Paulo em direção a Foz do Iguaçu atraídos também por Alberi.”

PARA ACESSAR O LIVRO “ONDE FOI QUE VOCÊS ENTERRARAM NOSSOS MORTOS NA ÍNTEGRA

http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/upload/livro-Onde%20foi%20que%20voces%20enterraram%20nossos%20mortos.pdf

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